sábado, março 02, 2002

Em Tempos Modernos...

A chuva caía forte há algumas horas e o cheiro trazido por ela penetrava no quarto de Clara em forma de lembranças e saudades. O som, em volume quase inaudível, sussurrava alguma canção de Dave Brubeck, provavelmente “Take Five”, a sua favorita. A taça de vinho sobre a penteadeira, por outro lado, parecia gritar para que fosse bebida, abandonada que estava por longo tempo ali.

Deitada em sua cama, Clara permanecia quieta, quase imóvel. Apresentada uma serenidade a princípio surpreendente, porém a angústia que vinha crescendo a cada minuto refletia em seu íntimo o verdadeiro estado em que se encontrava. Fechou os olhos lentamente e assim permaneceu até ser despertada por batidas incessantes à porta de seu quarto.

Contra a sua vontade, levantou-se de forma vagarosa. Foi até a mesa de canto e acendeu um incenso. Logo o ambiente tomou-se de um cheiro agradável, levando embora as lembranças que ali ainda insistiam em permanecer. As batidas continuavam, insistentes. Deu alguns passos e girou com calma a maçaneta. Sua mãe adentrou o quarto apressada.

Os olhos de Clara se fixaram por alguns instantes em algum ponto do horizonte que a janela deixava à mostra. Voltou-se para sua mãe e perguntou se já havia acontecido. Diante da resposta positiva, pediu que ela se retirasse dali. Fechou a porta com a mesma calma com que havia aberto alguns segundos antes.

Algumas lágrimas discretas rolaram por sua face ao avistar-se no espelho. A vaguidão que seu olhar trazia parecia lhe incomodar como nunca antes o fizera. Sentiu raiva de si mesmo por ser tão fechada, por não saber se expressar como e quando deveria.

Pegou a taça de vinho e bebeu todo seu conteúdo de forma afoita. Em seguida, girou o botão de volume do rádio com agressividade, elevando a música a um nível insuportável. O choro agora era forte e compulsivo.

Enfiou a cabeça no travesseiro, tentando abafar sua tristeza, mas não servia de consolo. Devia ter sido mais sensata e ter dito tudo o que deveria quando teve oportunidade. Mas por medo, insegurança ou sabe-se lá o que mais, preferiu se omitir. Agora era tarde.

A sensação de que uma grande injustiça fora cometida a tomava por inteiro naquele momento.

Às vinte horas e doze minutos de um dia de março as ligações foram encerradas e o público escolhera o eliminado do novo "reallity show" da televisão sem que ela conseguisse dar o seu voto.

Prometeu a si mesma nunca mais ligar a televisão.