sábado, março 30, 2002

Aviso ao leitor atrasado:
Por motivos diversos, resolvi deletar o último post. Ainda esse feriado colocarei algo novo aqui para compensar.
É só isso mesmo. Volte em breve.

sábado, março 23, 2002

Across The Universe

Era quase meia-noite e ainda não saíra de casa. A garrafa de vinho estava pela metade, os sapatos pela sala, ela no sofá. Apesar do quadro aparentemente caótico, sentia por dentro uma serenidade incomum. Já perdera as esperanças de fazer algo naquele sábado, mas mesmo assim não se sentia mal por isso. Talvez fosse a primeira vez que não desejava avidamente estar em outro lugar, estar em companhia de outras pessoas. Nunca lhe parecera tão bom estar ali sozinha.

Os últimos acontecimentos não a encorajavam muito, é verdade, porém não era hora de se lamentar. Jurara não se deixar abater na próxima vez que tivesse uma decepção e iria cumprir isso. Por pior que fosse a situação, tudo haveria de melhorar. Um dia chegara ao extremo de tentar cometer suicídio por overdose de remédios. Hoje ria de quão patética fora sua postura. "Nada vai mudar meu mundo", pensou.

Sentia-se especialmente forte aquele noite. Singularmente bela. Nada conseguiria mudar o seu mundo. Levantou-se do sofá e caminhou até a estante. Tirou com carinho um velho compacto dos Beatles e o colocou para tocar. O som que preenchia o ambiente a fazia ainda mais leve. Aquela talvez fosse a melhor herança deixada por seus pais. Se pudesse ficar ali todo dia ouvindo as mesmas músicas, seria até capaz de esquecer que eles a expulsaram de casa aos dezesseis anos quando descobriram que estava fumando maconha. Infelizmente o tempo lhe incutira responsabilidades.

O que lhe importava agora não era nada disso, porém. Mesmo com todas as dificuldades, conseguira se firmar na vida e estar ali agora. Tinha um bom emprego, um bom apartamento, um bom carro. Faltava-lhe um amor, é verdade, mas se acostumara a essa ausência com o passar dos anos. Seu rosto delicado denunciava os vinte e cinco anos que tinha, ainda que a postura tentasse dizer que esse tempo já se passara há muito. Aprendeu desde cedo que é preciso se impor para conquistar aquilo que mais se deseja; talvez por isso a inocência lhe parecesse tão remota.

O relógio já marcava quinze para uma. Encheu mais uma taça de vinho e levou à boca com calma. O prazer que tal degustação lhe dava era algo que poucos conseguiriam entender, disso ela não tinha dúvidas. Foi até a janela e reparou que poucas luzes nos prédios próximos ao que morava estavam acesas. Uns três ou quatro apartamentos apenas. Madrugada de sábado. Por que haveria de ser diferente? Todo mundo ansiava por sair em noites assim. Não ela.

Voltou seus olhos para a rua e reparou que o fluxo de carros era provavelmente mais intenso do que em muitos dias úteis. E era tão tarde! Várias dúvidas surgiram em sua cabeça nesse instante. Para onde iam todos? O que gostavam de fazer? Por que não conseguiam ficar em casa? Será que ela era a única que pensava diferente? Estava na hora de mudar seu comportamento?

Notou que o mundo não parou enquanto esteve imersa em suas próprias complicações por anos a fio.

Decidiu apagar a luz e ir dormir.

terça-feira, março 12, 2002

Pelo Menos Uma Vez

- Acho melhor a gente terminar.

- Como assim? Você tá doido? Logo agora?

- É. As coisas não podem continuar assim. Tá tudo muito estranho.

- Ah, não. Não vou aceitar isso.

- Tenta me entender...

- Que entender o quê! Você não pode fazer isso comigo!

- Não estou fazendo nada com você.

- Claro que está! Você acha justo me deixar logo agora?

- Não é questão de justiça. É questão de necessidade.

- Necessidade! Hahaha! Necessidade de quê?

- Você não iria entender...

- Me diz!

- É melhor não.

- Você tá me magoando assim.

- Desculpa, não era a intenção.

- Mas você disse que me amava...

- Pois é...

- E não me ama mais?

- Não é bem assim. Apenas descobri que o amor é muito relativo.

- Como é? Relativo?

- Isso.

- Olha, desisto de entender você. Faz um favor?

- É claro...

- Veste a sua roupa e dá o fora daqui!

- Tá bom... não precisa ficar irritada...

- Mas antes, será que você faz uma última coisa?

- O quê?

- Me come pelo menos mais uma vez?

- Tá... mas você acha que isso vai ser bom?

- Pelo menos uma vez tem que ser.

quarta-feira, março 06, 2002

Cegueira Noturna

Eu já estava caminhando há alguns minutos quando ela passou por mim. A madrugada era clara, de lua cheia, por isso mesmo não fazia idéia de quão tarde podia ser. Na Avenida Atlântica, singularmente bonita, movimento intenso de pessoas e carros em todas as direções. Como sempre.

Amava Copacabana desde que eu era bem moleque ainda, quando meu pai me levava para andar na praia e apreciar, segundo suas próprias palavras, "aquilo que a natureza fez de melhor": as mulheres. Eu devia ter uns nove ou dez anos, nem havia me interessado pelo assunto ainda, mas, para não desapontá-lo, concordava com um sorriso amarelo ou um aceno de cabeça cada vez que ele proferia um elogio às moças que passavam no calçadão. Quando ela passou por mim, senti-me de volta a esse tempo, à infância que já se apagava da minha memória.

Não, não sou tão velho. Na verdade, estar ali me deixava especialmente nostálgico, carente de ingenuidade. Tudo era muito estranho e se confundia em minha cabeça. Eu já era parte de Copacabana, assim como Copacabana já era parte de mim; minha essência, minha alma, minha dor. Sentia Copacabana correr em minhas veias, ouvia Copacabana me chamar na madrugada. Por isso mesmo a Avenida Atlântica era meu lar naquele momento. Só podia ser ali.

Ela olhou em meus olhos com um brilho que nunca havia visto igual; um sorriso discreto atenuou a alvidez de sua pele, antes merecedora de minha atenção devota. Os cabelos ruivos deslizavam sobre seus ombros de tão lisos que eram. Seu andar transmitia segurança e delicadeza, ternura e desafio. O adereço perfeito à beleza de tal lugar.

Quando ela passou ao meu lado, tentei dizer alguma coisa, mas não consegui. Estava atônito, tal qual a primeira vez que avistei a imensidão daquela avenida na companhia de meu pai. Ela se foi e não tive coragem de olhar para trás. Achei por bem não interromper seu caminho, modificar seu destino. Continuei em minha direção, caminhando rumo ao nada. Como sempre.

Ainda hoje, quando Copacabana grita por mim tarde da noite, saio à rua e lembro com clareza fotográfica dela vindo em minha direção, sorrindo e olhando de forma única.

E a odeio por um dia ter me deixado cego para a visão daquilo que me é mais importante.

Copacabana.

sábado, março 02, 2002

Em Tempos Modernos...

A chuva caía forte há algumas horas e o cheiro trazido por ela penetrava no quarto de Clara em forma de lembranças e saudades. O som, em volume quase inaudível, sussurrava alguma canção de Dave Brubeck, provavelmente “Take Five”, a sua favorita. A taça de vinho sobre a penteadeira, por outro lado, parecia gritar para que fosse bebida, abandonada que estava por longo tempo ali.

Deitada em sua cama, Clara permanecia quieta, quase imóvel. Apresentada uma serenidade a princípio surpreendente, porém a angústia que vinha crescendo a cada minuto refletia em seu íntimo o verdadeiro estado em que se encontrava. Fechou os olhos lentamente e assim permaneceu até ser despertada por batidas incessantes à porta de seu quarto.

Contra a sua vontade, levantou-se de forma vagarosa. Foi até a mesa de canto e acendeu um incenso. Logo o ambiente tomou-se de um cheiro agradável, levando embora as lembranças que ali ainda insistiam em permanecer. As batidas continuavam, insistentes. Deu alguns passos e girou com calma a maçaneta. Sua mãe adentrou o quarto apressada.

Os olhos de Clara se fixaram por alguns instantes em algum ponto do horizonte que a janela deixava à mostra. Voltou-se para sua mãe e perguntou se já havia acontecido. Diante da resposta positiva, pediu que ela se retirasse dali. Fechou a porta com a mesma calma com que havia aberto alguns segundos antes.

Algumas lágrimas discretas rolaram por sua face ao avistar-se no espelho. A vaguidão que seu olhar trazia parecia lhe incomodar como nunca antes o fizera. Sentiu raiva de si mesmo por ser tão fechada, por não saber se expressar como e quando deveria.

Pegou a taça de vinho e bebeu todo seu conteúdo de forma afoita. Em seguida, girou o botão de volume do rádio com agressividade, elevando a música a um nível insuportável. O choro agora era forte e compulsivo.

Enfiou a cabeça no travesseiro, tentando abafar sua tristeza, mas não servia de consolo. Devia ter sido mais sensata e ter dito tudo o que deveria quando teve oportunidade. Mas por medo, insegurança ou sabe-se lá o que mais, preferiu se omitir. Agora era tarde.

A sensação de que uma grande injustiça fora cometida a tomava por inteiro naquele momento.

Às vinte horas e doze minutos de um dia de março as ligações foram encerradas e o público escolhera o eliminado do novo "reallity show" da televisão sem que ela conseguisse dar o seu voto.

Prometeu a si mesma nunca mais ligar a televisão.