domingo, setembro 30, 2001

O Maior Espetáculo da Terra

Dez. Vinte. Trinta minutos, talvez. Na verdade, nenhum dos que estavam ali presentes poderiam precisar há quanto tempo aquele corpo estava jogado no asfalto quente. A face, desfigurada, deixava claro que o impacto havia sido muito forte. "Ela morreu na hora", diziam alguns. "Será que ela chegou a sentir dor?", perguntavam outros. Enquanto isso, o cadáver permanecia ali, largado ao chão, desfazendo-se do pouco sangue que ainda insistia em correr nas veias da pobre moça.

Não devia ser mais do que meio-dia quando ela saiu de casa. Sabia que ia ter um dia atarefado, e estava atrasada. "Tenho que parar com essa vida vagabunda", repetia para si mesma enquanto descia no elevador. Os cabelos ainda estavam molhadas e tentava, desajeitadamente, passar batom nos lábios ao mesmo tempo que, já na rua, apressava o passo para chegar ao ponto de ônibus.

A pressa de nada adiantou, porém. Amargou uma longa espera até que passasse um ônibus que servisse. Quando chegou, a multidão que se aglomerava lá dentro quase a fez desistir, mas o fator tempo foi determinante para que continuasse. O trajeto comum demoraria pelo menos uma hora, não poderia mais esperar.

Poucos quilômetros tinham sido percorridos quando uma freada brusca surpreendeu a todos os passageiros. Em meio a cabeças que se precipitavam à sua frente, conseguiu enxergar, com certa dificuldade, o que ocorria. Diante do ônibus, duas viaturas fechavam a rua, impossibilitando qualquer passagem. Tentou, em vão, passar por entre as pessoas para sair da condução. Como única saída, resolveu saltar pela janela.

Ao fazer isso, contudo, não esperava que fosse ser interpretada de forma tão errada. Logo que alcançou o solo, avistou dois homens armados, apontando em sua direção. Em pânico e confusa, passou a correr sem rumo, ao mesmo tempo que ouvia três disparos e via o vidro do carro ao seu lado estilhaçando, o que não deixava dúvidas de quem era o verdadeiro alvo.

Entrou em uma rua transversal, esbarrando em todos que se encontravam no caminho, enquanto as vozes atrás dela iam se tornando mais intensas. Os passantes manifestavam-se, talvez surpresos com tão insólita cena, mas ela era incapaz de perceber quaisquer reações à sua volta.

Foi capaz de notar, no entanto, que estava agora diante de uma escolha difícil e que não poderia durar mais do que alguns segundos. Na frente, a poucos metros, uma avenida bastante movimentada. Logo atrás, dois homens que a perseguiam com armas em punho sem que ela mesma entendesse bem o porquê. Sua decisão foi puramente intuitiva e parecia a mais acertada no momento.

O som dos ossos se quebrando na frente do caminhão foi ouvido por todos que estavam na calçada naquele momento. Os dois policias sorriram com ar de escárnio e triunfo, virando as costas logo em seguida e caminhando lentamente na direção oposta.

Às treze horas e trinta e sete minutos daquele dia ensolarado de abril, uma pequena turma presenciou, atônita, a mais uma vida se perdendo de maneira insensata, digna dos filmes de grande bilheteria.

Quando o plástico preto cobriu o corpo em estado deplorável, as luzes se acenderam e a platéia foi para casa feliz por ter presenciado tão singular espetáculo da estupidez humana. O maior espetáculo da Terra.
O texto de hoje é bem diferente de todos que os 5 ou 6 leitores desse blog já viram por aqui. Tive que escrevê-lo "sob encomenda" para um trabalho da faculdade, o que já não me agrada muito. O resultado, porém, pareceu-me tão legal que pensei valer a pena publicá-lo. Quer dizer... não foi bem assim. Só tomei coragem de fazer isso porque a pessoa que mais critica tudo o que escrevo disse que estava realmente muito bom. Pois é. Como um elogio da parte dela é raríssimo, aqui está o texto. Vamos ver se estava certa...

Musicando

Corre um boato de que uma nova droga vem sendo misturada a bebidas alcóolicas em festas do alto escalão brasileiro. O sintoma é um só, e bem característico: aquele que ingere o alucinógeno diluído em seu “drink” passa a falar compulsivamente e sem qualquer relação de verossimilhança. Em casos extremos, dizem que a pessoa fala apenas por frases musicais. Não deixa de ser engraçado. Já estou até imaginando a cena: todos os convidados reunidos no salão e, de repente, sobe na mesa o anfitrião e começa a discursar:

“Meus bons amigos onde estão? Provavelmente caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento. O meu partido é um coração partido, e nessas horas percebo que nada do que foi será do jeito que já foi um dia, pois assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade.

Vejam bem, isso não pode ser assim, tão ruim. Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves e ah, quanto querer cabe em meu coração! Cada vez que eu fujo, eu me aproximo mais, e ainda vai levar um tempo pra fechar o que feriu por dentro. Apesar disso, é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque o tempo não pára. É, eu sei que a espera é difícil, mas continuo sambando.

Claro que isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais. Aliás, quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo. Mas agora o que vamos fazer? Eu também não sei. É, é bom aprender... a vida é cruel. Tá certo, viver é melhor que sonhar, e eu sei que o amor é uma coisa boa. Por isso que eu não quero dinheiro, eu só quero amar. Às vezes penso que isso tudo foi um rio que passou em minha vida e que já não há caminho pra voltar. Porém, ainda assim, não vou dizer que já lhes esqueci.

De fato, do Leme ao Pontal, não há nada igual. É por isso que eu fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita.

Muito obrigado pela atenção de todos!”

sábado, setembro 29, 2001

Em Você

Em certas noites, deito na minha cama e fico olhando o teto até tarde.
Nesse momento, penso em tudo que me acontece e vejo que o que eu mais desejo
É poder escolher melhor as palavras que digo
É poder esconder tudo aquilo que sinto
É poder mostrar que por você eu insisto
Mas aí percebo que minha bondade me impede de ser assim
E quando menos espero, desaprendo a gostar de mim.

sexta-feira, setembro 28, 2001

Verbos

De que adianta voar
Se Ícaro condenou a quem nos céus se aventurasse?

De que adianta andar
Se as pessoas caminham sem nenhuma dignidade?

De que adianta pensar
Se os cérebros pensam sem grande diversidade?

De que adianta falar
Se as bocas falam sem muita autoridade?

De que adianta ler
Se é proibido ler com pueril ingenuidade?

De que adianta escrever
Se não se pode escrever com certa liberdade?

De que adianta cantar
Se o mundo se cala ao ouvir o canto da novidade?

De que adianta amar
Se o coração não suporta as adversidades?

De que adianta viver
Se os verbos hoje já não mais expressam a realidade?

quinta-feira, setembro 27, 2001

E Se...

E se um dia você acordasse e visse que o mundo não era como você imaginava?

Se descobrisse que o céu é vermelho, como se feito de fogo,
Que as nuvens são amarelas, como se pintadas a dedo,
E que os mares são negros, como se escurecidos pelo medo,
Será que mesmo assim você teria medo de viver?

Se percebesse que as pessoas ao seu redor são foscas,
Que os carros que passam nas ruas são lentos,
E que a palavra é a maior arma de todos os tempos,
Será que mesmo assim você teria medo de correr?

Se acreditasse que a vida não é mais do que um estágio,
Que os seus sentimentos não são feitos para serem desprezados
E que a dor da perda não é algo que ocupa pouco espaço,
Será que mesmo assim você teria medo de sofrer?

Se entendesse que a grama não é mais verde do outro lado,
Que os pássaros não cantam apenas quando enjaulados,
E que a liberdade é algo que precisa sempre ser conquistado,
Será que mesmo assim você teria medo de esquecer?

Se não ignorasse que é importante dizer o que se pensa sempre,
Que as oportunidades não surgem sem um motivo aparente,
E que se deve a todo custo procurar seguir em frente,
Será que mesmo assim você teria medo de enlouquecer?

Se não esquecesse que ter alguém ao lado é essencial,
Que, quando se gosta, ignorar pode ser fatal,
E que o amor à primeira vista é algo real,
Será que mesmo assim você teria medo de querer?

Se pensasse que vencer em tudo não é necessário,
Que ter amigos ao seu lado é ser por eles estimado,
E que sozinho não se passa por nenhum obstáculo,
Será que mesmo assim você teria medo de perder?

E se um dia você dormisse e o mundo acabasse como um nada?

quarta-feira, setembro 26, 2001

Imagens

Avistou seu rosto no espelho e teve vontade de chorar. Não estava triste, é verdade, nem havia motivos para tal, mas mesmo assim teve vontade de chorar.

Pensou estar ficando louca, estar perdendo de vez todo e qualquer bom senso que ainda havia restado dentro de si, porém não poderia precisar o que de fato acontecia agora. Sentia-se estranha.

Esticou a mão em direção à imagem e a tocou com sutileza. Parecia não crer que o que via ali era ela mesma. Em um gesto fraco, deslizou os dedos pelo espelho, enquanto as pernas, irriquietas, mexiam de um lado para o outro.

Com calma e suavidade, pegou a tesoura que estava em cima da penteadeira. Andou até o armário e tirou o vestido mais caro que lá havia. Lentamente, cortou-o em vários pedaços. Amarrou-os pelas pontas, deixando-os com a forma de uma corda.

Um a um, foi cortando os fios de seu cabelo, até deixá-los totalmente disformes. Tirou os sapatos, a blusa, a calça. Apagou a luz do abajour. Com passos curtos, foi até a janela. Abriu-a. O vento que soprava no oitavo andar era forte e quente. A noite estava sublime.

Passou a mão pela testa e viu que suava frio. As pernas, antes irriquietas, agora estavam trêmulas. Não obedeciam mais. A cabeça pesava, lágrimas rolavam do rosto incessantemente.

Deu dois passos para trás. Respirou fundo, buscando coragem para fazer o que era necessário. Contou até cinco. Usou então toda a sua força e lançou janela afora aquele espelho maldito. À corda feita com o vestido propiciou destino semelhante, como se revidasse às mazelas da sociedade consumista.

Virou as costas para o mundo lá fora e orgulhou-se de sua atitude: "não há imagem que possa ser tão bela a ponto de se morrer por ela".

terça-feira, setembro 25, 2001

Amores Brutos

Já passava de meio-dia quando ela se levantou da cama. Era sábado, dia ensolarado, e não havia compromissos que a fizessem ficar preocupada por estar acordando tão tarde. A noite anterior tinha sido muito boa, e dificilmente conseguiria apagar da memória pelo resto de sua vida tudo o que havia acontecido.

Tinha sido tudo muito rápido. Um simples telefonema e pronto: lá se foi aquela rotina enfadonha de toda sexta-feira, regada a filmes antigos de locadora e pipocas de microondas. Há tempos vinha querendo fazer de seus dias algo diferente, mas por falta de opção ou companhia, acabava sempre ficando em casa. Mas agora...

Aprontou-se em menos de 40 minutos, e antes mesmo que pensasse em desistir, já estava descendo no elevador, rumo à garagem. Ao entrar no carro, reparou que não havia um cd para ouvir. Como não havia tempo para voltar ao apartamento, contentou-se em sintonizar uma rádio que tocava algo parecido com Barry White. Girou a chave na ignição, abriu o portão e saiu.

Lá fora, as luzes dos postes pareciam iluminar de forma diferente. O céu estava limpo, repleto de estrelas que ela achou nunca haver reparado antes. Quase não havia carros na rua, o que não era comum para um noite de sexta-feira. Pensou ser aquilo muito estranho, mas como nada poderia estragar o que iria fazer, continuou seu caminho.

Não demorou mais do que uma hora para chegar lá. O cenário era perfeito: inúmeras pessoas, todas bem vestidas, aglomeravam-se à porta. Sem muitas dificuldades, avistou a autora do telefonema. Caminhou apressadamente até ela e saudou-a de forma contida, bastante discreta. Estava ansiosa.

Juntas, andaram até o quarteirão seguinte. Pararam. A amiga caminhou até uma van estacionada a poucos metros e fez sinal para que a seguisse. Abriu a porta lateral e mostrou com orgulho o que lá havia. Era um arsenal digno de grandes guerrilhas. Armas e mais armas que só vira antes em filmes hollywoodianos. Era sublime.

Colocou um pedaço de meia-calça na cabeça. Em seguida, esticou os braços e apoderou-se de uma submetralhadora. A amiga ainda lhe entregou uma granada, para o caso de ser necessária uma medida "mais enérgica", e mostrou-lhe o fuzil que iria utilizar. A munição era vasta e, com toda certeza, mais do que suficiente para o que iriam fazer.

Entraram na van e seguiram até o local de destino, prontas para o grande ato. Em menos de 5 minutos, entornaram uma garrafa inteira de vodka. Era preciso uma última dose de coragem. Olharam para fora e repararam que os outros olhos não se concentraram nelas. Perfeito.

Foi tudo tão rápido que não possibilitou qualquer reação. Em pouquíssimo tempo, avistava-se algo em torno de uma centena de corpos, todos maravilhosamente manchados de vermelho. As duas, sorrindo, regozijavam-se, enquanto a van saía rápido do local do crime. Estava feito.

Começava a preparar seu café da manhã quando batidas incessantes à porta tomaram de súbito o ambiente. Ficou assustada. Abriu apenas uma pequena brecha e viu que se tratava
de sua comparsa, com uma garrafa de champagne em uma mão e uma caixa bem embrulhada na outra.

Comemoraram com prazer a perfeição daquele gesto insano. A caixa, porém, permanecia intocada. A amiga fez então um gesto para que a abrisse. Tirou o laço com suavidade e levantou a tampa. Olhou o que havia dentro e temeu que fosse verdade.

A explosão foi devastadora.

Nos destroços, os bombeiros encontraram incrivelmente intacto um pequeno papel no qual se lia, com letras tremidas, uma frase que parecia justificar tudo aquilo.

"O melhor só se adquire às custas de um grande sofrimento. Agora estaremos juntas."

E percebeu-se então que não havia amor tão forte que não fosse doentio.

segunda-feira, setembro 24, 2001

Aniversário

Às vezes parece que você acorda do lado do avesso, que nem devia ter acordado. Parece que o mundo todo conspira contra você. Como hoje.

Não fui trabalhar, mas deveria. É meu aniversário, pensei, não preciso ir. Vai tudo dar certo. Não vou acordar cedo só para trabalhar duas horas e voltar. Não vou. Não fui.

Tinha um almoço marcado com quem eu mais queria ver no dia de hoje. Especialmente. Hoje. Não vou poder ir, disse ela, tenho que ficar estudando. Mas a gente pode ir só na loja de cd's, não serve, perguntou ela. Não respondi. Mas fui.

É meu aniversário, vai tudo dar certo, pensei.

O celular tocando. Várias vezes. Atendi. Parabéns vinham. E iam. Os problemas vinham. E ficavam. Eu ia.
Desmarquei os outros compromissos. Só eu podia resolver tudo pelos outros. Só eu. Assim não vai dar, assim não. Vai. Só, fui.

É meu aniversário, vai tudo dar certo, pensei.

Ela ficou em casa. Me deu um abraço longo. E um beijo. Na bochecha. Não fica triste, falou, vai tudo ficar bem. E entrou. Eu fiquei ali. Parado. Pensando. Não sei nem como voltei. Me fui.

Mas é meu aniversário, vai tudo dar certo, pensei.

O carro não ligou. Não acreditei. Olhei o marcador. Zero. A gasolina se foi. Toda. 20 litros. 35 reais. 8 horas de trabalho. Já acabou. Em dois dias. E eu fiquei. A pé.

Mas é meu aniversário, vai tudo dar certo, pensei.

Cheguei em casa. Sem almoçar. 5 horas na rua. Nem tudo resolvido. Liguei para ela. Não estava em casa. O celular. Atendeu. Queria falar. Com ela. Não podia, estava ocupada. Só às 8 da noite. Mas são só 5. E a casa tá vazia. Eu também.

Mas é meu aniversário. Vai tudo.

E eu vou.

domingo, setembro 23, 2001

Sincretismo

Hoje acordei com uma sensação estranha. Não sei bem o porquê, mas tive a sensação de que as coisas tornaram-se bem diferentes em minha vida de uns tempos para cá (não poderia precisar desde quando, mas digamos que tempo suficiente para originar reflexões e devaneios diversos a respeito disso vindos de minha parte), e senti isso de maneira positiva, como se, no meio de um caminho errado, eu parasse e visse que era hora de seguir o rumo certo. Mas não sei mesmo de onde surgiu essa sensação. Estranho, não?

Hoje acordei com um pensamento engraçado. Não sei bem o porquê, mas acordei desejando ser uma outra pessoa, uma pessoa diferente da que fui até agora (não poderia precisar de que forma, mas digamos que diferente o suficiente para não originar reflexões e devaneios diversos a respeito disso vindos de outras pessoas), e senti isso de maneira inexpressiva, como se eu quisesse ser uma pessoa menos fria, menos cínica, mais certa. Mas não sei mesmo de onde surgiu esse pensamento. Estranho, não?

Nem tão estranho assim. Pensamentos e sensações desse tipo me acompanham com freqüência, desde que minha (fraca) memória registra a existência de vida nesse corpo. E talvez sejam até mais recorrentes do que trivialidades, fatos comuns à grande maioria da humanidade. É complexo, eu sei, mas até que me entendo melhor por crer nisso. Quase sempre o entendimento disso tudo é feito de maneira pouco usual, bem abstrata, o que impossibilita qualquer explicação. Mas não deixa de ser uma forma de entendimento. Às vezes gosto de estar ambíguo, ser um equívoco, mesmo que eu seja mais simples e mais certo do que pareço ser.

Para alguns, o que estou falando deve lhes parecer mais familiar, deve ter algum sentido. Para os demais, porém, não deve passar de um momento de loucura meu, de um texto sem sentido, de meras palavras desconexas jogadas num papel. Eu diria que ambos estão certos. Só não sei o quanto.

Hoje acordei confuso.
Das Palavras

A chuva caía forte do lado de fora. Em seu quarto, Beatriz ouvia com enorme prazer o som das gotas batendo na janela. O som ligado em volume baixo transmitia a voz de Elis Regina suavamente, quase como uma velha canção de ninar. Deitada na cama, observava o teto branco e imaginava se havia realmente feito a escolha certa. Não precisava ir muito longe com seus pensamentos, porém. O sorriso estampado em sua face era o maior indicador disso.

É verdade que tudo acontecera de forma bastante rápida. Abrira os olhos determinada manhã e sentira que era hora de mudar. Viver daquele jeito não era mais possível e as opções que figuravam em sua mente sugeriam medidas enérgicas. Da teoria à ação foi tudo muito simples. Levantou-se da cama, tomou um banho e vestiu seu melhor vestido. Colocou os brincos mais caros, passou batom cuidadosamente e ajeitou os cabelos. Estava pronta.

Saiu de casa apressadamente, levando debaixo do braço uma pasta. Caminhava a passos largos pela rua que ainda acabava de acordar. Parou para tomar um copo de café na padaria, na banca folheou o jornal do dia e seguiu seu caminho. O perfume que exalava podia ser sentido à distância, despertando nos poucos que já se encontravam de pé as mais diversas sensações.

Em seguida, entrou no primeiro ônibus que avistou no ponto. Ao trocador fez menção para que avisasse quando estivessem chegando ao ponto final. Sentada, repousou a cabeça na janela e se colocou a pensar. Seriam os últimos quilômetros antes da decisão final, e se havia algum momento para se arrepender, era agora.

Permaneceu imóvel até seu destino. Agradeceu pelo aviso ao trocador e desceu do ônibus. Uma simples olhada ao redor de si indicou que ela conseguira exatamente o que queria: estava em lugar que desconhecia por completo. A praia em frente ao ponto escolheu como local perfeito para o seu ato.

Da pasta que trazia consigo, já na areia, foi retirando uma a uma as folhas do livro que terminara dias antes. Em seguida, colocou-as lentamente no mar, deixando que fossem levadas vagarosamente.

À editora que esperava ansiosamente aquela que seria a continuação de seu romance de maior sucesso, disse apenas que havia perdido os originais, e, em seguida, pediu sua demissão.

À sua moral, entretanto, dera força redobrada, através da consciência de que escrever não haveria de se tornar jamais uma obrigação contratual, um ato forçado. Permaneceria como algo feito com paixão, com uma vontade imensa de fazer das palavras seu mundo.

A chuva caía forte do lado de fora. Em seu quarto, Beatriz ouvia com enorme prazer o som das gotas batendo na janela. Sorria graciosamente.

Havia mais mundo a se viver do que aquele que o dinheiro podia comprar.

sábado, setembro 22, 2001

Trapo

Sempre correra atrás de um grande amor. Procurava-o em cada esquina, em cada nova relação que iniciava sem vontade. Às vezes até sofria pelo término de uma ou outra dessas, mas não durava mais do que algumas semanas assim.

Ouvia de todos que ainda não havia chegado a sua hora, que um verdadeiro amor estava à sua espera. Entretanto, não acreditava nisso. Na verdade, sentia justamente o contrário: que as oportunidades já tinham surgido em sua vida e que ele não aproveitara.

Começou a questionar se não haveria algo de errado com ele mesmo. Seria possível viver sem amar? Com toda certeza, pois senão já teria morrido há tempos. Então por que continuava imune a esse sentimento? Não conseguia mesmo entender.

Aos poucos, foi acostumando-se com a idéia de que não havia nascido para amar. Construiu uma muralha em volta de si e resolveu não se aventurar mais em qualquer relação. Passou a ser considerado extremamente frio por todos aqueles que o cercavam e parecia orgulhar-se disso.

Afastou os amigos de anos por conta de tão arredio comportamento. Logo depois foi a vez dos parentes mais próximos. Não saía mais de casa, não atendia aos telefonemas e nem respondia às cartas enviadas. Tinha como única companhia a velha aparelhagem de som e sua coleção de discos de jazz.

Transformou-se por completo. A aparência agora era das mais repugnantes: barba por fazer, cabelo sem corte, roupas surradas. Não tinha motivos para estar diferente, é verdade, mas estava chegando ao extremo, e isso preocupava os poucos que ainda nutriam alguma compaixão por sua figura.

Meses se passaram sem que houvesse notícias de mudanças em seu comportamento. Parecia que havia mesmo acreditado que não teria chance de amar e se desligado do mundo. Como conseqüência óbvia, qualquer resquício de lembrança de sua pessoa foi apagado daqueles com quem convivera um dia.

Certa vez, caminhando pela casa enquanto ouvia um compacto de Chet Baker à meia-luz, reparou em sua imagem refletida suavemente na janela e observou-a por alguns instantes. Sentiu desprezo por si mesmo. Transtornado, lançou janela afora a taça de vinho praticamente cheia e começou a chorar compulsivamente.

Da gaveta onde estava a luminária tirou o revólver do qual disparou um tiro certeiro em sua própria fronte.

Quando encontraram o corpo, cerca de duas semanas depois, o impacto foi enorme. Todos se perguntavam o porquê de uma escolha tão errada e de um fim tão trágico para uma vida que poderia ser genial.

Mal sabiam que ele morrera por descobrir, ao avistar seu reflexo, que o amor que tanto procurara estava o tempo todo ao seu lado e que havia jogado fora ao longo daqueles anos.

O amor por si mesmo.
Caros leitores,

O desembucha.com resolveu sair do ar em definitivo e, por isso, migrei para o blogger.com. Para os que entravam no antigo endereço, essa mudança tem tudo para ser ótima, pois acredito que não haverá mais problemas para acessar o conteúdo diariamente. Agora é só ter paciência: aos poucos irei recolocar os textos aqui, e espero que vocês continuem freqüentando esse espaço da mesma maneira que faziam antes.

Para começar, fica o texto que me rendeu mais elogios na antiga versão do Rumo Ao Nada. Com os leitores novos, espero repetir o sucesso. Já em relação aos antigos, só posso pedir desculpas por estar me repetindo, mas não poderia simplesmente jogar fora tudo que já estava escrito lá. Prometo algo novo para breve.



Dias Assim

Tem dias que eu sinto saudades de você. São poucos, é verdade, mas eles existem. Normalmente são dias cinzentos, frios, dias que eu queria que você estivesse aqui ao meu lado. Mas você não está.

Em dias assim, costumo pegar o cobertor, enrolar-me nele e sentar na poltrona do canto da sala. A sua poltrona. Acendo a lareira, pego uma taça de vinho e ligo o toca-discos. Coloco aquele vinil que você me deu de presente de Natal e ouço várias vezes o mesmo lado, num gesto mais do que automático. Passo o dedo lentamente pela borda do copo, como se alisando os seus cabelos. Fito o retrato de nós dois juntos naquele verão do ano passado acima da lareira e faço menção de pegar o telefone. Mas sempre desisto.

Em dias assim, costumo reler todas as cartas que escrevi para você e que nunca tive coragem de enviar, mas que também nunca rasguei. São palavras que vão das mais doces às mais ásperas, muitas vezes sem nenhum sentido. Algumas escritas com tanta raiva que chegam a marcar a folha do outro lado. Outras, tão suaves que mal consigo ler o que está escrito. Penso em enviá-las agora, apenas para mostrar tudo o que você fez comigo quando me deixou. Mas me parece tão inútil que as deixo no mesmo lugar.

Em dias assim, vejo o seu filme preferido pela milésima vez e lembro de cada comentário seu. Vou à cozinha e faço brigadeiro para comermos com colher. Coloco aquela blusa roxa com listras amarelas que você tanto odeia e deixo a cama desarrumada só para você implicar comigo. Passo o dia deitado, olhando para o teto e revendo fotos das viagens que fizemos. Aperto o travesseiro contra o rosto para ver se ainda sinto o seu cheiro nele, igual ao que fazia todo dia de manhã quando você já havia se levantado para preparar nosso café.

Em dias assim, tenho vontade de berrar bem alto o quanto eu te amo, de dizer tudo aquilo que não disse antes por puro medo ou orgulho.

Nesses dias que sinto saudades, penso em você me olhando com carinho e dizendo que nunca vai me deixar.

E me pergunto se dias melhores virão.