domingo, outubro 20, 2002

Ponto Zero

Acredite, comecei a organizar minha vida sem você. E eu sei que você acha que sou incapaz, que não vai se passar nem uma semana e eu vou voltar correndo, só que dessa vez você está enganada. Já estou me acostumando com a idéia e até curtindo não ter mais suas manias por aqui.

Lembra quando você resolveu ir embora de vez? Achei mesmo que o meu mundo ia desabar. Pois é, nessas horas eu sempre maximizo as emoções, chega a ser ridículo. Choro, me desespero, imploro por mais uma chance. Aí, quando passa, parece até que nunca senti nada. E logo estou rindo à toa, embalado pela memória do momento.

Nos primeiros dias foi difícil, reconheço. Ainda olhava para qualquer canto da casa e sentia sua presença aqui. Chegava até a desejar que você não tivesse ido embora, olha só! Se eu soubesse que eu sem você seria paz, juro que não teria insistido tanto para ficar. Na verdade, está tão agradável agora que nem parece que você esteve presente há tão pouco tempo.

O que acontece é que eu sempre tive muito medo de mudanças, e o que me apavorava na sua partida era ter que começar a viver mais uma vez e de forma diferente. Tinha perdido a paciência já, e, mal ou bem, o que existia era o conforto que os anos de convivência nos trouxeram. Mas isso não podia ser o suficiente para nos manter juntos, e sua decisão de me largar abriu meus olhos para isso.

Falando assim, parece que não foi bom enquanto você esteve comigo. Não, não é isso. A última coisa que quero é soar recalcado, e também não quero fazer discurso entusiástico da minha solidão. No fundo, ainda estou espantado com a tranqüilidade que é encarar a vida com a sua ausência.

Aprendi com você que certas decisões, por mais que sejam difíceis em um primeiro momento, precisam ser mantidas até que se esteja acostumado a elas. Isso me motiva ainda mais a deixar tudo como está. Sei que algo se perdeu de mim nesse processo, mas encaro como natural.

Agora meus vinis podem ficar arrumados do jeito que eu quero, sem qualquer ordem lógica. As roupas podem ficar jogadas sobre a cama por dias e não preciso deixar a mesa do café posta todas as manhãs. Meu apartamento voltou a ser o meu caos, onde só eu me entendo (só, eu me entendo).

De fato, eu já sei como vai ser minha vida sem você. Vou viver acordando tarde e comendo qualquer besteira. Os dias vão ser todos iguais, simples como eu sempre quis, sem preocupações ou aborrecimentos. Tudo vai ser mais fácil.

O problema é que eu nunca soube lidar com o que vem fácil, e talvez por isso o complicado me atraia tanto. Não teria como ser diferente agora.

Acredite, comecei a organizar minha vida sem você. Só não me acostumei ainda com a sua ausência. Será que você ainda demora muito para voltar?

domingo, outubro 13, 2002

Silêncio (texto-clichê)

Ele olhou para o relógio na parede mais uma vez. Nos últimos vinte minutos, esse gesto havia se repetido mais de dez vezes. O pé direito batendo inquietante no chão, em compassos quaternários, era a reprodução mais instantânea de sua ansiedade. A poltrona começava a se tornar desconfortável, mais até do que o corpo que coibia o vôo de sua alma, e o silêncio atrapalhado pela maquinaria que girava os ponteiros não era o aliado de antes.

Levantou-se e pegou mais um pouco de vinho tinto. A noite já ia alta e quente, incomum para aquela época do ano, mas mesmo assim se sentia à vontade para aquele gesto invernal. Ao se sentar novamente, viu o porta-retratos que ficava na mesa de centro. Vazio. Não conseguia lembrar desde quando estava assim, muito menos qual havia sido a última foto a ocupar aquele lugar que deveria ser de destaque, só que isso não o incomodava. Muito além de uma representação estática, precisava agora de algo tangível. Voltou sua cabeça para a parede do relógio e os minutos ainda demoravam a passar.

O telefone ao seu lado, mudo, berrava por atenção. O toque incessante de outras épocas parecia esquecido, e mesmo a poeira que tomava conta do aparelho não era capaz de dar a dimensão da ausência. Pela primeira vez, ele o olhou com vontade de usá-lo. Abriu a pequena caderneta de números anotados em formas tremidas e letras corridas e procurou alguém para quem valia a pena ligar. Os nomes que se seguiam pouco diziam, até que a letra J se fez notar em cores, quebrando sua visão monocromática.

Uma palavra configurada como quebra de sentidos. Não se imaginava mais capaz de ser tomado por algo assim, muito por conta do tempo que já se ia perdido na memória, mas estava de novo imerso naquilo que tanto desconhecia. Em momentos assim, sentia-se estranho a si mesmo, uma incógnita que o mundo adorava ignorar, e procurava respostas a perguntas ainda não feitas. Era o clichê personificado, uma convergência de direções rumo ao nada.

Sua covardia o impediu de ligar. O mundo quase autista em que se encerrava a sua vida mantinha-se como norteador, como o ponto de segurança. Modificar a lógica da inércia não lhe era mais atraente, ainda que soubesse ser erro e omissão não buscar algo tão importante que se perdera por obra do tempo e da imaturidade. Olhou mais uma vez para a máquina que se movia lentamente na parede e decidiu, em caso raro, agir sem o respaldo de uma máscara.

No dia seguinte, haveria de falar pessoalmente com ela e colocar um fim na angústia que se apossara há quase uma década de seu interior. Precisava reorganizar o seu próprio caos, por isso não se calaria mais.

Do frio que se projetava dele naquela noite quente, tomou forma um único sentimento, aquele em que nunca acreditava ver tomando a si.

Mas já era tarde demais para a luta ser vencida, e o vento seco que passava lento pela janela levou consigo as vontades adormecidas. Os ponteiros do relógio se calaram e o pé não mais bateu compassado no chão.

Despediu-se da vida como sempre a encarara, sem entender o que fazia ali.