segunda-feira, fevereiro 21, 2005

àsvezesquasenuncaparasempre

Ela fechou os olhos, ele esticou a mão. O rosto fora tocado de leve, enquanto a lágrima que escorria de um dos olhos era desviada de seu fatídico destino, o chão. Não havia som ali, nem mesmo o choro contido de um sofrimento incomum. Talvez nem respiração existisse naquele momento; apenas um gesto e nada mais. O tempo até poderia ser medido, se um instante como aquele coubesse em um lugar pequeno como o universo, mas eles mesmos não desejavam saber. Estavam, eram, foram. O que mais precisava existir?

Ele mexeu os lábios, ela levou seu dedo a eles. Não havia porque buscar palavras, pois elas não seriam capazes de significar algo assim. Não devia existir movimento, sob o risco de esvanecer o belo. Eram dois e um só, a união perfeita da imperfeição humana. Impossível definir o que se passava em corações paradoxais como aqueles: eram dor e alegria, distância e companhia. Completavam-se, apenas. Não sabiam ainda, é verdade, e talvez nem saberiam um dia, mas a incógnita não os incomodava. Já sabiam o principal.

Havia o toque da mão, o rosto lívido e o ar rarefeito, nada mais. E tudo era suficientemente único ali.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

Reinvenção

Ele olhava para as mãos trêmulas e sentia que havia algo de errado. Ainda que não sentisse nada diferente, seu corpo parecia reagir de forma estranha ao que o cercava naquele instante. O cenário permanecia intacto: vidros quebrados, móveis revirados, fotos e cartas espalhadas. Não conseguia lembrar a origem do caos que se instaurara ali, apesar de saber que tinha sido ele o responsável por tamanha destruição. Havia perdido o controle, mas não conseguia ainda se dar conta disso.

Seus olhos encheram d?água quando avistaram, no sofá, um velho porta-retratos destruído. Tinha colocado fim à única lembrança de sua infância que ainda guardava: uma foto de quando era criança, em algum carnaval já distante, inocentemente fantasiado de Super-homem. Não conseguiu deixar de perceber a ironia do momento: o pequeno infante, vestido de super-herói, despedia-se do mundo de fantasias e surgia como um homem adulto, fraco, indefeso, despreparado. Uma lágrima tímida escorreu pela face, então.

Caminhava pela sala do apartamento, analisando o estrago que ele mesmo tinha promovido, ainda que sem consciência. Nada, porém, doía mais do que aquele porta-retratos abandonado no sofá, desfalecido. Procurava em cada objeto fora da ordem natural a razão para aquilo tudo ter se originado, mas só obtinha novas perguntas. Voltava a partes remotas de seu passado a todo instante, e se odiava mais por isso. Preferia passar longe de tudo aquilo, e só agora notara o quanto estar ali ao longo de tanto tempo o fazia mal.

De súbito, parou frente ao espelho. Examinou-se atentamente. Os cabelos brancos começavam a surgir, apesar da idade. Seu semblante trazia o peso de quem vivera infeliz até então, com um sorriso que nunca se realizava e um olhar que trazia dor. Da rua, ouvia vida. Sons de folia. Correu até a janela e observou a alegria lá embaixo. Sentou-se, as pernas balançando ao ar. Era um dia quente. Virou-se para a sala, notou mais uma vez a confusão que havia causado ali e entendeu finalmente a grande metáfora que havia feito de sua vida.

Pulou para dentro e correu para a rua.

Crescera ouvindo que o ano só começava depois do Carnaval.

Talvez ele também precisasse ser assim.