terça-feira, julho 23, 2002

Filme Caseiro

Ela chegou com os olhos bem vermelhos. Se não a conhecesse muito bem, diria que tinha fumado maconha. Só que ela não era de fazer essas coisas. Além do mais, a expressão que seu rosto trazia denunciava que aquela estranha coloração vinha de horas e mais horas de choro desesperado. O que acontecera eu ainda não sabia, mas com certeza não era simples.

Reparei que trazia em suas mãos um papel amassado. Fiz menção para que me entregasse, porém ela o apertou ainda mais. Seus olhos encheram d’água. Aquele gesto me pareceu bastante familiar e, ao mesmo tempo, um tanto incomum para alguém como ela. Sua força sempre fora o motivo de seu maior orgulho e nunca a vira tão descontrolada. A boca estava seca e não dava a impressão de que fosse capaz de emitir qualquer som.

Passei minha mão por seus cabelos e a puxei de encontro ao meu ombro. No que a abracei, ela pareceu desfalecer. Seu corpo pesava indefeso e quente, ansioso por amparo. Eu não conseguia dizer nada, até por não saber o que se passava com ela. Apenas ficava ali presente, esperando que esse meu estar a fizesse bem.

Ela, porém, não se acalmava. Ao contrário, chorava copiosamente e me apertava com a pouca força que lhe restava. Afastei-a por um breve momento e fitei seus olhos outrora azuis. Eram tristes e angustiantes agora, tomados por aquele vermelho que tanto me assustara minutos atrás. E eu simplesmente não sabia o que fazer.

Do som de sua voz baixa tentei identificar alguma palavra, sem sucesso. Aproximei meus ouvidos de seus lábios, porém ela se calou de novo. Disse a ela que podia confiar em mim e que queria saber o que estava acontecendo, ao que fui repreendido com um “você não entenderia”.

Peguei de suas mãos o papel amassado sem que houvesse qualquer resistência. Dentro dele, em letras tremidas, pude ler aquelas palavras que por anos ansiava ouvir de sua boca. Algo me dizia, porém, que não tinham sido escritas para mim. Ela me olhou com firmeza e pude ter a certeza do meu engano. Dessa vez eram meus olhos quem marejavam, infelizes por tanto amor desperdiçado.

Virou as costas e se colocou a sair de minha casa. Antes de ir, olhou-me em um último momento com ar de despedida. Esse gesto doeu mais do que qualquer perda que eu já tivera em meus vinte e poucos anos de vida. Mandou-me um beijo lento e fechou a porta.

O céu era cinza e um vento frio entrava pela janela entreaberta. Meu som tocava Chet Baker e a garrafa de vinho tinto estava vazia em cima do sofá. Tudo seria triste aqui.

"Mas nada vai conseguir mudar o que ficou
Quando penso em alguém, só penso em você
E aí então estamos bem..."

Renato Russo, "Por Enquanto"

terça-feira, julho 02, 2002

Pela Manhã

Acordou assustado. Suava e ofegava como nunca lhe acontecera. Pelo ar, era capaz de sentir aquele perfume que tanto lhe fizera bem em todos os dias de convivência. Ela estivera em seu sonho, sem dúvidas, e isso a colocara tão próxima quanto desejava que estivesse agora.

Sentia um aperto no peito. Desconhecia aquela sensação, mas algo lhe dizia que seu nome era saudade. Ela partira não havia muito tempo, porém a sua ausência já começava a se mostrar como dor. Algumas lágrimas escorreram do seu rosto. Lamentou ainda mais que ela não estivesse por perto para ter seu abraço agora.

Seu primeiro impulso foi pensar em ligar. Discou os primeiros números e desistiu. Teve vontade de jogar o aparelho forte contra a parede. Não o fez, contudo. Abaixou a cabeça e o choro passou a ser compulsivo. Tremia todo o seu corpo. Parecia que sua vida tornara-se vazia sem ela, que as coisas tinham perdido o sentido.

Olhou para o relógio e viu que não passava das oito horas da manhã. Dormira pouco e faltava muito para o dia acabar. E a única coisa que precisava agora era que os dias passassem rapidamente, trazendo-a de volta o mais breve possível. Se é que ela de fato irá voltar. Esperar.

Pela primeira vez, sentiu que suas manhãs seriam difíceis demais.