sábado, novembro 09, 2002

Uma Incerta Canção

Certo dia alguém lhe disse que sua vida era um mundo de fantasias. Na hora em que ouviu isso, só conseguiu sorrir e fazer de conta que não se importava, mas, em seu interior, sentiu-se invadida e desnorteada. Como alguém ousava entrar assim em suas defesas? Que direito tinha uma pessoa qualquer de afirmar o que se passava ali dentro dela? Não era justo. Doía aquela constatação, doía a incerteza que ela trazia em si, doía a realidade. Precisava ser tão difícil? Não via mal em ser assim; era seu refúgio, seu abrigo.

Estava em um imenso campo verde. Poucas árvores compunham a paisagem e o sol brilhava alaranjado de fim de tarde. Deitada, sentia uma leve brisa passear por entre seus lisos fios de cabelo e os olhos teimavam em fechar como se tivessem medo. Não sentia a paz que todos os romances lidos em sua adolescência de sonhos davam como certa em um lugar assim. Ao contrário, havia algo de incômodo ali, ainda que não pudesse precisar o quê.

O branco manchado da parede do quarto a deixava sem asas, só que os pés também não tocavam o chão (ela já sabia). Prendia-se naquele instante, enquanto a mente vagava solta por algum lugar em que nunca esteve, mas que era familiar a ela. Estava em sua cama, vendo tv. Estava à beira de um penhasco, pronta para pular. Estava no colo de sua mãe, criança carente e indefesa. Estava só. Não estava mais ali.

Batidas incessantes à porta chamavam a realidade de volta. Seu corpo não respondia. Em silêncio, falava com o olhar perdido de quem vivia muito além daquele espaço. Se chamavam fantasia aquilo, para ela o nome era vida. Nunca se questionara o porquê de ser assim, nem mesmo sabia o que seria ser diferente. Entendia-se bem às voltas com as criações de sua imaginação, apesar de todo o medo que as aparições costumavam causar. Era dor e aprendizado em sensação única, vontade de se encontrar no escuro da alma.

Cerrou os punhos por um breve instante, em gesto de apreensão. Não sabia em que se segurar – só havia uma fortaleza em seu mundo, a sua própria – por isso precisava sentir-se presente de novo. Tinha que coibir as fugas de sua alma, tornar-se parte da realidade que insistia em escapar. E era naquele gesto que se fazia entender na solidão do seu quarto e do seu íntimo, seca e quieta, sem que sua consciência estivesse ali.

O espelho não refletia sua imagem. Era noite fria e um rádio ao longe tocava uma velha canção que lembrava Bob Dylan. O silêncio não estava mais no ambiente, mas ainda assim dentro dela tudo ficou quieto. As imprecisões e os cortes de seus pensamentos também desapareceram.

No chão, um pequeno papel se movia, leve como o vento que vinha da janela. Nem mesmo a pequena poça d’água era capaz de para-lo por completo. O despertador tocou em hora que não era comum e nem assim ela se levantou. Só um suspiro lento se ouviu ali.

“Moça! Ei, moça! Acorda! O dia ainda não acabou!”

A vida, sim.