terça-feira, dezembro 23, 2014

Os ponteiros


Olhar o calendário e constatar que mais um ano se passou o fez chorar outra vez. Não que as marcas da idade o incomodassem ou que o simples mudar de número representasse algo. Não. O que doía era reafirmar a ausência, a lembrança de que tudo permanecia igual – esse eterno retornar a uma felicidade que não se desenha mais como possível. E aí então ela vinha. Com forma, som, cheiro. Com saudade. Mas não era real, como nada do que vivera nos 730 dias que se seguiram desde então. Aos poucos, perdia as forças para sua busca por um recomeço improvável ou por um superar pleno, mantendo-se ciente de que o lugar do vazio era um só. Sem ela, os domingos ficaram cinza. Sem ela, o acordar ficou amargo. Sem ela, as horas ficaram pesadas. Estar ali, ao final de outro ano, com as memórias que insistiam em tomar o real, era afirmar que seu mundo parou desde então. Ruim, claro, mas ele não conseguia evitar. Virara refém de sua própria história, vítima de sua própria inabilidade para amar. Desejou ser homem de lata, sem coração que batesse no peito. Só que era tarde demais. O calendário não dizia apenas que mais um ano se passou. O calendário clamava por um mudar de páginas que significasse que era tempo de voltar a sentir. Ele ouviu a campainha tocar. Escreveu o nome dela no papel mais uma vez. Quis voar, leve como quando ela ainda estava, só que suas asas ficaram quebradas. Era pássaro triste, incapaz de cantar. Engoliu a data e pediu ao céu que a chuva voltasse a cair. Só assim, sem o sol de um novo dia, não se lembraria do sorriso que ela levou dali.

quinta-feira, novembro 06, 2014

Amar la trama*


Quando o poeta acordou e viu seus sonhos ruírem, decidiu que as palavras não poderiam cessar. Juntou seus cacos, enxugou suas lágrimas e abriu o peito num suspiro profundo. O coração (sempre ele) espasmava em batidas fracas de pedido de socorro, e a dor tomou conta quando já se pensava superar. Fez-se, então, poesia, preenchendo os versos com os sentimentos mais nobres. Dela pedia o olhar, o abraço, o beijo. Jurava vida a dois e felicidade eterna. E a Musa, coisa amada, nada respondia, guardada em sua torre cega e fria. A ele não importavam mais as horas - longas demais - ou os dias - amargos quase sempre -; somente o retorno, razão de quem ama, ressignificaria a existência. Por isso, a súplica virou refrão, em cores fortes e tons menores. Por isso, o desejo ficou, quieto e constante. Decidiu-se, pois, pela espera, já que seguir não era possível. Fechou o peito num soco, deixando as lágrimas rolarem pela face. Dobrou o papel escrito a sangue e o colocou no bolso. Bailou sem alma a canção do rádio. Amou intenso o cinza da tarde que caía. Brindou com o nada o amor de dois.

E se reafirmou poeta de uma palavra só.   

*com a benção de Jorge Drexler

domingo, setembro 21, 2014

Intocável, infalível


Descobri, com a sua presença, que você nunca foi embora. Que meu coração ainda bate forte, que minhas mãos tremem e que minha respiração para só por causa de você. Que cada gesto seu me faz feliz, que seu olhar me acalma e que seu abraço me traz saudade. Que é por você que eu ainda gasto palavras, que guardo sentimentos e que crio ilusões. Descobri que é você quem não pode ir para onde eu não possa te seguir.

Por isso, descobri que não sei lidar com seu silêncio. Com a sua ausência depois de um dia próximo, com o vazio das mensagens que ecoam no nada. Com a música que me conta nós dois, com os diálogos com que o cinema nos reproduz, com os textos que não deixam de surgir. Com não ver seu sorriso todo dia, com não poder te dar um beijo na despedida, com o sofá vazio onde começamos a ser um só. Descobri que não sei abandonar.

Porque, na verdade, descobri, há um bom tempo, que preciso de você aqui.

(E assim cuido apenas para que você fique o quanto e como puder ficar.)

domingo, setembro 14, 2014

Lunar


A verdade é que eu te amo.

Assim, com poucas palavras, muito sentido e nenhuma dúvida.

Em prosa curta e direta.

Intenso.

Inteiro.

Ainda.

E só.

quarta-feira, agosto 20, 2014

Penas


Quanto eu inventei você, havia um espaço que pedia desesperadamente para ser preenchido. Uma ausência do que não tinha sido que doía a cada esperança de que fosse, transformando o viver como um em tarefa da ordem do impossível. Foi assim que seu lugar fez-se lógico, ainda que nunca tivesse lhe pertencido. Eu só não sabia o que viria a partir daí. Tornei-me dependente dos seus olhos, da sua boca, da sua mão branca e insegura - que nunca existiram assim. Era tudo real, a ficção mais perfeita que já construí. Às vezes, quando minha memória me traía, você se transformava em outras que já passaram por aqui. Diferente, mas igual a tudo com que eu nunca sonhei - e sempre tive. Então, quanto mais você existia, mais você sumia, e a verdade é que não tinha me preparado para me perder de mim. De repente, virei ser vagante sem a sua referência. Respirava você, bebia você, existia em você. E no silêncio, sombra. Você era tudo. Parte do que eu sou, parte do que eu nunca poderia ser. Era impossível. Por isso, quando eu matei você, deixei um buraco no meu peito que não cessa de sangrar, e agora caminho triste em busca de um novo jeito de recriar sua inexistência. Mas a mente insiste em não mais te desenhar.

quinta-feira, julho 24, 2014

Dali


Eles eram abstratos. Cores pálidas, sons dissonantes. Andavam em caminhos tortos, com passos desordenados. Tinham pensamentos confusos - mas sorriam. Sorriam sorrisos de gente que sonha que a vida é fácil e que o amor é simples. Eram conta de resultado preciso. Paradoxo de dois contra tudo. Aí fascinavam pelas imprecisões e curiosavam pela beleza surreal-cubista. Ela era doce. Ele era vento. Mar salgado de palavras mudas. E sentiam. Sentiam sentimentos de coisas que se reinventam para serem novas quando cansam e querem sumir. Sinestesia de tudo em dois. Rascunho de obra-prima que não tem tempo para vir à luz. Eram. Não. São. São deles. São só. Sós. Sóis. Porque o resto não existe se não precisa existir. Acaba, fim. Fica silêncio para quem pretende ouvir. E eles vão. Abstratos, mas inteiros. Complexos, mas intensos. Dia da noite que insiste em abraçar.

domingo, junho 08, 2014

Simples


Ela acorda sempre com um sorriso e coloca sua música favorita. Prende delicadamente o cabelo, joga uma água no rosto e toma um chá. Parece dar cada passo com prazer singular, vivenciando como único o mais simples momento. Quem a vê não acredita que há maldade no mundo, que a vida pode dar errado e que as pessoas são ruins. Tudo nela soa amor. É por ela que o sol surge, os pássaros cantam, os olhos brilham. É com ela que as noites fazem sentido, os banhos são mais demorados e os filmes emocionam. É dela a existência perfeita.

Mas a vida não é colorida, as canções não são sempre alegres e os roteiros nem sempre terminam com final feliz. Então ele aparece e tenta roubar a beleza dela para si. Aprisiona, limita, diz que sem dois não pode haver um completo. Então ela ganha olhos avermelhados, noites mal dormidas, pernas fracas e inseguras no caminhar. A água esconde as lágrimas, o silêncio toma suas manhãs. Sua existência se apaga e só resta o desesperar. 

Até que um dia a dor já é mais do que pode. É quando ela tenta ser de novo, ela que sempre foi. É quando ele deixa de existir, ele que nunca é. É quando se separam, eles que jamais deviam ter. É noite que vai embora para um outro acordar.

Ela levanta no novo dia e encontra um sorriso que não sabia estar ainda ali. É perfeita a existência dela. Pisa com leveza, abre os ouvidos para voltar a viver. Dança. E coleciona sonhos para voar de vez. 

sábado, abril 05, 2014

Solitude


Da última vez que as palavras foram dela, escrever ainda era difícil. Sangrava um pouco a cada uma que aparecia no papel, deixando um pedaço de mim. O resultado, apesar de belo, era doloroso - uma sinfonia triste, feita em tom menor. Depois disso, a folha precisou ficar muito tempo em branco, uma história esquecida de um passado nem tão distante. Até que ela reapareceu por aqui, entre um presente escondido e um texto relido, como se quisesse garantir que tudo estava em seu lugar. Mas a sua música não tocava mais. Seu cheiro havia sumido, sua voz era inaudível. A única coisa que restava era uma prosa de despedida, dessas que a gente escreve para dizer que já não se importa. Por isso, é curta e direta. Fria. Feita sob medida para quem escolheu virar sombra de um amor.

domingo, fevereiro 23, 2014

Sobre Balões


Eu sempre soube que levaria um tempo para esquecer você. Não que você merecesse ou fizesse questão. Não que nossa história tivesse sido incrível, única. Não que eu não pudesse recomeçar depois de tudo. Simplesmente porque eu não queria. E, a gente sabe, quando se resolve não querer alguma coisa fica complicado. Foi assim que eu segui ressignificando meu espaço, colocando você em cada parte do que me cercava. Não porque você tivesse, de fato, ganhado importância em toda essa dimensão, mas porque era uma forma de prolongar sua existência depois do término. Uma maneira de lutar contra o esquecimento inevitável, contra o apagar necessário. Uma saída para driblar a solidão. Mas foi quando percebi que essas memórias já não tinham cor, que os momentos já eram feitos de silêncio e que os sorrisos eram borrões que, finalmente, entendi que você nunca esteve aqui. Eu te criei para ser o que eu precisava ter, para ocupar um lugar estratégico no plano de uma vida a dois. Só que era plano de um, hoje eu sei. No fim, você virou prosa, frase, palavra, letra. Interrogação. Ponto final. Imagem criada em um texto que pede despretensiosamente para ser escrito em uma tarde de domingo. História que já não me importo mais em contar.