sexta-feira, dezembro 24, 2004

Roteiro inacabado

"O que você faria se não tivesse medo?"

A pergunta visitava sua mente de minuto em minuto, em uma repetição enlouquecedora.

Procurava centenas de respostas, mas, no fundo, já sabia.

"Arriscaria para ser feliz".

E foi assim que ele resolveu.

O amor não tardaria em se concretizar.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Sobre ele, sobra ela

Ele tinha medo. Sabia que não fazia sentido, sabia que a situação era favorável a ele, mas mesmo assim não conseguia obter a segurança necessária para não se preocupar a cada segundo com a possibilidade da perda. Talvez porque, pela primeira vez, tivesse a noção de que tinha em mãos algo de muito de valor, algo com que sempre sonhara e nunca conseguira alcançar. Custava até a acreditar que tinha alcançado, e muitas vezes colocava tudo a perder por causa dessa desconfiança. O fato era que ela estava ali, apesar de todas as dificuldades existentes, e ele simplesmente não sabia como fazer para não deixá-la sair de perto. Deveria saber que, para isso, só bastava sê-lo, pois fôra assim que chegara até ali. Mas não. Tinha a sensação de que tudo que fizesse era pouco, que a qualquer instante os castelos de areia poderiam ruir e seus sonhos se perderiam de vez. E não adiantava as palavras ditas, as confissões trocadas e as juras de amor infinitas; ele não se convencia, talvez traído pela própria consciência de quem não aprendeu a amar e não acredita que possa ser amado por alguém. Por vezes se rendia à impossibilidade da situação, descrente na concretização de um sentimento que parecia atravessar quilômetros em estradas sem fim. Porém, ao dormir, tinha a certeza de que o pensamento sublimava, e eles se encontravam, ainda que no campo em que só os amantes à moda antiga costumavam caminhar. E era ali que tudo fazia sentido, que não havia imperfeições, dúvidas ou dificuldades, apenas dois se tornando um, a felicidade no estado mais simples de sua complexidade. Quando a chuva ia embora, mas o sol não aparecia, nem a lua, porque não havia mais a noção de tempo, nem de espaço, só de que não há medida para a paixão. Porque o amor não se dá calado, eles bem sabem (ao menos nos sonhos eles sabem). Ele tinha medo, é verdade. "Não há motivos para isso", ela costumava dizer. Mas ele sabia que o amor não podia ser compartilhado além de dois. Por isso tinha medo. E ela continuava ali.

Esperando.

domingo, dezembro 05, 2004

Texto novo sim, é claro. Mas não aqui. No outro. Driving In The Rain.

sábado, novembro 27, 2004

.viena.paris.rio de janeiro.

"6 anos podem ser 6 dias", era só o que ele pensava quando pousou a cabeça no travesseiro e tentou, em vão, dormir, naquela que seria a noite curta mais longa de toda a sua vida. Já era quase amanhecer quando a voz sumiu e ele passou a sonhar, ainda que seus olhos se mantivessem abertos. Mas não se importava. Havia redescoberto uma direção, encaixado as peças de seu quebra-cabeça existencial depois de uma interrupção abrupta e inexplicável. O outro lado continuava ali, e nada parecia absurdo. Ainda que o tempo tivesse sido tão impiedoso a ponto de manter o vazio existente por tanto tempo, era fácil continuar agora. Eram iguais a antes, ainda que diferentes por tudo. E ele sentia que algo não se perdera dali. O sentido se estabelecera com a possibilidade do reencontro a existir. Porque não faria sentido tudo acabar com um adeus ao entrar no avião.

terça-feira, novembro 16, 2004

Entre engrenagens e tintas

"Toda decisão tem um peso, não adianta tentar fugir", disse ele após olhar nos olhos dela e sentir que havia dúvida pairando ali. Vivera aquela situação incontáveis vezes ao longo de sua breve existência, talvez por isso a frase saísse de seus lábios com tanta facilidade que não representava os tortuosos caminhos que o levaram a essa conclusão. E ela permanecia imóvel, serena, como se não existissem palavras que a atingissem naquele momento. Mas ele sabia que por dentro ela estava dividida, que, por mais que ela tentasse fugir, uma hora a resposta surgiria, e a opção acertada surgiria. Acertada porque aprendera que não havia no mundo opção "errada", todas eram acertadas, ainda que sob uma ótica que só alguns pudessem entender - e isso seria a causa do sofrimento. O fato era que ele sabia que estava avançando no escuro. Não temia, porém. Sempre repetiu que a vida é feita de riscos e curta demais para se ter medo de buscar o melhor. Pena que não conseguia convencê-la a pensar assim também.

"Toda decisão tem um peso, não adianta tentar fugir", pensava ele, enquanto ela desviava de seu olhar. Ele sabia que ela tinha muito mais a perder, mas era seu egoísmo que falava mais alto, e só conseguia pensar em como seria bom se ela se resolvesse por aquilo que era favorável a ele. No fundo, tinha receio de não saber arcar com essa decisão, só que sabia que a certeza apenas seria alcançada pela tentativa. Era preciso achar o lugar dos dois, encontrar-se nela, realizar-se, completar-se, ainda que por um breve momento ou mesmo por toda a eternidade. Não se importaria em ser clichê. Desafiaria o mundo, se isso se mostrasse necessário. E iria insistir. Ainda acreditava em sua intuição, presságios ou coisas do gênero, por mais que fosse um resquício bobo de infância ou pura ingenuidade dos amantes de outras décadas.

"Toda decisão tem um peso, não adianta tentar fugir", escrevia ele, ao mesmo tempo que ouvia Sinatra cantar "Can't Take My Eyes Off Of You" e olhava para o relógio apontando onze horas da noite.

Era terça-feira, chovia no Rio de Janeiro e ele estava em casa. Sabia que o mundo lá fora fugia de seu alcance, mas mesmo assim não temia. Apenas esperava.

Como um ponto final que pacientemente aguarda o seu lugar para selar o destino de um texto triste.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Se não há atualização aqui, ressuscita-se lá.

Depois de um ano, o DITR está volta. É só clicar aí do lado e ler.

Em breve, texto novo nesse espaço.
Abraços!

quarta-feira, outubro 20, 2004

O sentido de lá

As ruas eram tortas, mas ele cismava em andar em linha reta. Tinha os passos firmes, a respiração acelerada e a cabeça erguida, traços de quem sabe o que faz. Por dentro, porém, dividia-se em vários, fragmentos de alma que se ressentiam a cada emoção despertada. Aprendera desde cedo que o ser humano era aquilo que aparentava ser, e não o que era de fato, e talvez por isso acreditasse mais na sua imagem projetada do que em sua própria essência. Era criador e criatura em contato sistemático, harmonia de cores como somente o preto e o branco são capazes de compor, fortalecidos pelo contraste. Contraste que ele mesmo era; dicotomia, paradoxo. Imagem ausente frente ao espelho, formas difusas em uma fotografia. Era único, ser singular e irreal. Porém cismava em andar em linha reta, com os passos firmes, a respiração acelerada e a cabeça erguida, traços de quem quer se convencer de que é maior que o mundo, ainda que o céu sempre prove com sua infinitude que há muito mais além de si mesmo. Mas o olhar seguia perdido em esperanças vãs, na crença de que ainda podia ser diferente, melhor do que fôra até então. E aí não bastava o mundo a confrontar, porque o ato de desencorajar já não era o bastante. É quando se descobre que há a capacidade de ir além, ainda que a insegurança insista em por vezes levar para baixo a sensação de plenitude, lembrando que nunca se sabe o que é o certo a se fazer. Só que as linhas tortas só assim as são para quem não enxerga que só há um caminho a se seguir, e que mesmo o erro é o acerto inevitável da imprevisibilidade da vida. Ele sabia. Por isso nunca olhava para baixo, nunca cerrava os punhos ou relutava em pisar em qualquer caminho. E era feliz assim.

segunda-feira, setembro 27, 2004

Depois das luzes acenderem

Sempre achei que haveria um momento que justificaria toda a nossa existência. Aquele em que tudo se esclareceria, que as respostas seriam dadas e o verdadeiro sentido enfim apareceria. Talvez fosse um sentimento pueril, uma inocência perdida que atenuasse qualquer sofrimento, mas o fato é que sempre esteve comigo, apesar de poucas vezes eu manifestá-lo. Até chegar o amanhecer e o pôr-do-sol, e Viena e Paris explicarem para mim que eu não estava errado, que mesmo após 9 anos algo ainda podia fazer sentido para dois, e que comigo, um dia, não haveria de ser diferente. E as expectativas frustradas e as buscas insanas e as tentativas equivocadas seriam mero pretexto para alcançar o fim, por saber que há um, e somente um, encontro que se completa, que se faz por inteiro. Com olhares, gestos e sensações que nunca se igualam, e que por mais que se viva uma eternidade ficará como a mais forte lembrança. Porque há sempre o reencontro para quem acredita que o primeiro era o único e o certo, e não há mal algum em crer no amor romântico e eterno mesmo depois da adolescência. Todos nós merecemos, ainda que não tenhamos encontrado até então. Ninguém quer chegar aos 52 anos e se divorciar chorando por nunca ter amado a esposa. Eu não serei assim. Sigo esperando acontecer, pois hoje aprendi que Cèline e Jesse vão sempre me justificar.

quarta-feira, setembro 01, 2004

Mal pontuado

Mal ligou o rádio e o primeiro acorde da canção preencheu o ambiente e seu pensamento. Não era preciso ir muito longe para buscar a referência: era a música dela, a mesma que um dia, ao olhar em seus olhos, ele dissera que desejava ter o mínimo de talento para criar algo com palavras que fossem tão apropriadas para defini-la, e que ela sorriu desajeitada e disse que a poesia não tinha dono, desde que o sentimento empregado por quem a declamasse fosse honesto. Podia passar anos sem ouvi-la que não perderia a referência. "Há momentos que são fortes, ainda que breves", ele repetia enquanto se olhava no espelho, os olhos cansados da noite mal dormida e a barba por fazer de quem se sentia vencido pela preguiça. Caía ao chão diariamente, e a sensação de se reerguer era única, uma superação hercúlea. Das mãos não brotavam mais nada, pois estavam fechadas para os ataques às paredes do quarto manifestadas em horas variadas.

A porta do armário não fechava, ela sabia bem, por isso nem se esforçava em tentar arrumar. Até sua mania de colocar tudo em seu devido lugar precisava ter fim. Se nem ela estava se achando apropriada, por que o restante deveria ser? Não havia motivos. Mas ela sabia que não adiantava fugir do espelho, que as paredes podiam ser opressoras se não respeitadas e que tentar ouvir a música que sussurrava ao fundo, do outro lado da casa, era inútil se não estivesse aberta para as conseqüências disso. Anos eram pouco para quem se interessara um dia por mais do que a poesia torta que beira as canções desperdiçadas nas bocas e mãos de amantes ocasionais. "Sou mais do que simples palavras", ela dizia para si, fechada em seu íntimo como quem perdeu a chance de ser diferente do que sempre esperaram que fosse.

Acreditar na fantasia fôra a saída para que tudo caminhasse até então. Alimentar a razão nunca fizera sentido. E tudo parecia tão distante agora que pensar era o que restava. Sem sonho eterno, sem promessa de um novo meio de se viver uma ilusão. Continuar para não acabar. Recomeçar do certo para esquecer os erros. A caneta era a chave, mas só o que se via eram guardanapos rabiscados. Não havia mais versos que unissem os dois. Somente ponto final.

terça-feira, agosto 24, 2004

Das voltas, o (re)início

Escreveu a última palavra e sorriu. Chegara ao fim de mais um texto, mesmo depois de tanto tempo sem escrever. Sentia-se livre novamente, longe do bloqueio que o fazia olhar para a folha em branco e só imaginar um destino para ela: o lixo. Cansara de falar das coisas tristes, cinzas e frias, de tudo aquilo que só fazia com que os outros se identificassem pelo lado mais obscuro, pela essência do sofrimento. Não, não era mais o seu caminho. Almejava aprender a usar suas palavras de forma mais positiva, sem clichês de "Londres-em-meio-à-névoa" e de "chuva-que-traz-saudade", e sabia que era possível. Talvez por isso aquela última palavra significasse tanto. Não era mais um peso, daí o sorriso, tão incomum. De fato, não havia sofrido para chegar até ali. Só tinha que achar os meios para continuar.

"Abriu os olhos e ergueu o corpo da cama. O livro havia terminado, a televisão não transmitia um filme que ele não tivesse visto. Olhou para todos os cds expostos na estante e percebeu que a música não trazia significado se enfurnada entre quatro paredes. Precisava soltar as amarras, precisava abrir as janelas e deixar o sol entrar uma vez, precisava sair, precisava. Ir. Sem saber para onde, sem saber por quê. Tal como no dia em que decidiu que devia buscar o seu espaço e se encontrar em si mesmo. Agora era a hora de perceber o que os outros podiam trazer para que ele alcançasse o ser completo, ainda que esse ser completo só se fizesse assim por breves minutos ou segundos. O quarto não era mais suficiente, seus objetos não eram mais suficientes. Seria mais."

Mas como saber o que viria a ser? Continuava rumo ao nada...

sábado, julho 31, 2004

Aviso aos leitores

O Rumo Ao Nada não morreu, apenas esteve de férias (longas, eu sei, mas acabaram). Promessa de texto novo ainda essa semana.

Enquanto isso, leiam os textos antigos, há coisas boas perdidas pelo site.

Abraços!

sábado, maio 22, 2004

Pecados Capitais

Era claro ainda quando tive seu abraço pela primeira vez. Nem mesmo o tempo nublado poderia estragar o que em mim surgia naquele momento. A vontade era de não soltar mais, aproveitar cada momento daquele gesto dócil, lento e confortável, mas de tão inesperado, só consegui reagir de forma atolada, quase como o menino ingênuo que tem um beijo roubado pela amiga no pátio na hora do recreio e só consegue olhar para os amigos e sorrir, sem graça. Você tinha o domínio da situação ali, ainda que não soubesse disso. As horas que se seguiriam não levariam do pensamento o que acabara de acontecer, e o meu olhar a buscar o seu em meio a centenas de cores de pessoas era independente de mim, desobediente e afoito.

Quando nos afastamos, pairei sobre seus olhos mais uma vez. O brilho deles me lembrou os motivos pelos quais havia me fascinado quando a conheci, e desejei que você voltasse àquela sala mais vezes só para tê-los em minha direção novamente. Balbuciava palavras ilógicas, tentando agradar sem nem pensar como. O intuito talvez fosse apenas prendê-la ali, deixa-la mais tempo ao meu lado, nem que fosse para sentir sua presença me desconcertando. Mas você não se demorou muito, e eu me vi em seguida projetando maneiras de nos encontrarmos outras vezes momentos após, lutando contra a inevitabilidade do dia que iria embora em breve. A partir dali, conformei-me em observá-la ao longe, imaginando que você pudesse estar fazendo o mesmo, calcado em uma ingenuidade que há muito me abandonara.

Inquieto, circulava por todo o local, à espera de que seus passos encontrassem os meus. Por outro momento estivemos perto, mas o tempo que levei me questionando se deveria me aproximar foi o mesmo que a levou embora dali. Passei então a torcer pelo fim, para que a escuridão tomasse conta de tudo ? de repente assim haveria uma nova oportunidade. Nada mais detinha minha atenção. A mente com seu sorriso preenchendo, seu abraço sentido a todo instante, meus ouvidos agraciados com a sua voz. Você já me tinha, mesmo que não quisesse. E eu sabia que a partir de então só seria eu se a trouxesse também para mim.

Já não havia mais esperanças quando resolvi ir embora e a vi ali parada, sozinha, vestida de negro como a noite que se fazia reduto perfeito para um final feliz. Chamei-a. Você sorriu mais uma vez e novamente me abraçou. Dessa vez sentia que aquele era o lugar certo, e correspondi com todo o carinho que queria poder lhe dar pelo resto da vida. Só que uma hora acabou, e quando tive de me despedir, só consegui pedir que você aparecesse pelo menos mais uma vez onde nos conhecemos e ser reticente ao deixar escapar que gosto muito de você. Não devo ter sido tão claro quanto queria, nunca sei sê-lo, porém não saberia fazer diferente com você.

Talvez no dia em que seus olhos não forem capazes de me fazer sentir como um apaixonado, eu consiga fazer você entender o quanto quero você aqui.

domingo, maio 02, 2004

Entre pontos e vírgulas

O que é fazer poesia para quem não sabe ler? Será que há cor nas palavras de quem vê em branco e preto?

Era tudo o princípio. Ainda se via a liberdade pelos seus olhos, e o cinza que fechava o dia era exceção, não a tônica de um mundo particular. E ela sabia, por isso se punha a escrever sobre além do que se vê, ainda que essa percepção pudesse ser sua, só sua, e a dele fosse tão fechada que seria impossível acreditar no novo não concreto.

Mas ela tinha a palavra para enfrentar o seu olhar, e ele fugia para não ter sua verdade descoberta assim. Ignorara a poesia até então, certo de que não havia entrelinhas que justificassem a crença em um outro lugar (talvez não quisesse se achar), mas perdera seu lugar no chão enfim. Caótico, buscava sempre o entendimento, só não o esperava por olhos que não fossem os seus. Afastou-se, por fim.

Era preciso continuar a ver o sol se pôr sozinho.

terça-feira, abril 13, 2004

Plano-seqüência

Respirou fundo, abriu os olhos e se levantou do chão. Não havia mais ninguém ali, e a chuva que caía do lado de fora era menos triste que as velas acesas por toda parte, ainda que se fizesse luz em meio ao breu naquele instante. Caminhou com passos pesados até a porta, ouvindo atento cada pequeno som que pudesse mudar seu destino (ele não acreditava nisso, mas agora tudo parecia tão irreal que talvez houvesse lógica no absurdo). Chovia forte agora e nada se via lá fora. Abriu a porta. Não havia mais o que o prendesse ali. Seus braços esticados como asas e uma corrida sem pensar. Lágrimas escorriam dos olhos. A água gelada em seu corpo trouxe de volta o alívio que anos de angústia levaram com sua vontade de viver. Nada se via. Só seu corpo parecia capaz de sentir. Abraçou a si mesmo com forças e deixou seu corpo escorregar para o chão. Ali mesmo dormiu, jogado a ratos e sujeira que sintetizavam sua existência.

terça-feira, março 09, 2004

Leaving Here

O dia estava calado. Ele olhava para o horizonte, aflito, e não encontrava uma resposta. Sentia que o mundo mudara desde o momento em que aquelas palavras caíram em seus ouvidos, porém não sabia precisar o que viria a partir de agora. Estava sentado em uma praça, o céu escuro de um fim de tarde atípico e o corpo cansado de tanta responsabilidade. Nem as crianças no parque pareciam sorrir, entediadas com seus brinquedos velhos e os olhares displicentes de suas babás. Ele era único ali. Sua pouca idade pesava mais do que o aceitável para alguém que quase nada sabia da vida adulta, e a falta de perspectivas que lhe tomava agora doía demais. Havia perdido a vontade de agir, apesar de não aceitar os acontecimentos. Fora traído em seu íntimo, a confiança abalada no futuro de tudo aquilo e o medo do fracasso de volta à tona. Chorou. Gotas de chuva caíam dos céus, que eram cúmplices mudos daquela tristeza. Apenas um sinal de que podia sentir-se assim era o que ele conseguia enxergar, mas a resposta do mundo tinha chegado enfim. A melancolia da tarde pintava o quadro do fim de um tempo. Não existia mais saída. Fechou os olhos e correu em direção ao mar. A luz do dia acenou tímida, escapando de sua prisão. Os dois estavam livres de novo.

terça-feira, março 02, 2004

Irreversível

Apenas um sorriso dela e ele soube que estava de volta. Achava que já tinha se acostumado com a sua ausência, sem sentir o vazio no quarto com a cama desarrumada e os pés descalços, mas a verdade é que ainda era ela ali, e só isso bastava para mexer com ele. As pernas quiseram tremer, confusas, enquanto as mãos se escondiam nos bolsos de criança tímida. Fez-se silêncio apesar do vento que soprava as folhas lá fora. Ela não se importava. Era claro ainda, o dia parecia eterno. Dois passos. Um abraço. Ela parecia não existir. Os olhos dele se fecharam e só abriram quando ela se afastava lenta pela estrada de barro. Ele não foi atrás. Conhecia aquele gesto como poucos. O sol se escondeu em meio às nuvens e ele virou as costas. Havia vencido o reencontro enfim.

terça-feira, janeiro 20, 2004

Mais do Mesmo Início

Olhou pela primeira vez depois de anos para a velha foto da casa onde passara a infância e sentiu saudades. Uma lágrima quase escorreu pelo rosto, mas foi contida pela mesma mão que há pouco achara aquela lembrança jogada embaixo de papéis na gaveta da cômoda ao lado da cama. O dia já tinha ido embora, e a pequena luz que iluminava o quarto de súbito tornou-se desconfortável para seus olhos. Achar aquela imagem em papel desbotado, quase sépia, significava voltar duas décadas no tempo, a uma época em que decisões não eram tão penosas e sua vida não havia mudado tanto. Olhava-se no espelho agora e sentia o peso de uma idade que não parecia ser a sua, curvada pelas responsabilidades que lhe vieram tão cedo e sem que desejasse. Não era mais forte, e só ela sabia disso. Antes, pouco importava como reagia ao que lhe vinha de repente, acostumada que era a não se importar com o diferente. Agora, tremia pelo inesperado, fugia do obscuro que o destino lhe trazia como oportunidade. Talvez tivesse se perdido na própria rotina que criara ao optar por viver sozinha desde que tudo se foi e não conseguia mais se achar em si mesma. Estava cansada de tentar definir. Aquela velha foto da casa onde passara a infância lhe dizia muito mais. Viu pela janela seu rosto alegre, brincando sozinha em seu quarto ainda bem nova. Ouviu os latidos do cachorro do vizinho e notou que a mangueira com que brincava no quintal nos dias de sol voltara a jorrar. Fechou os olhos e se sentiu em paz. Lágrimas escorreram livres pelo rosto, mas pela primeira vez em muito tempo, elas não eram de tristeza. Abriu os olhos e a foto continuava sépia. Guardou-a na gaveta, junto com o seu passado de meias rosadas e desenhos em papéis amassados. Era o fim daquela idade. Sabia que precisava seguir em frente.