sábado, novembro 05, 2005

"Indo embora, deixo-te um adeus"*

E o silêncio fez-se de novo quando o telefone alcançou a mesa. Não o silêncio do espaço, mas o silêncio da alma, aquele que confirma dolorosamente o vazio deixado por uma partida, a angústia causada por uma recusa, a tristeza vinda de uma palavra não-dita. Era ele contra o mundo, de novo. E não havia riso, por isso do silêncio fez-se o pranto, constante e intenso. Uma dor que saía dali e se respaldava ao sul, como se migrasse em busca de lugar melhor para se alojar. Mas lá só encontrava felicidade, alívio, e retornava ao seu centro, solitária, única e inquietante. Enquanto isso, as mãos percorriam a face, tentando em vão conter as lágrimas, e a boca se retorcia, trêmula. Ele pensava conhecer a sensação, mas só agora, vivendo, entendia o que tantas vezes as histórias de amor tentaram lhe dizer em forma de aviso. E chorava como criança, desesperado, buscando justificativas que não existiam e repetindo para si mesmo que não podia ter sido em vão. Talvez precisasse ter aprendido a não esperar tanto, ou então a não acreditar que existia respaldo no impossível. Só que era ingênuo no que falava ao coração, e se deixava trair sempre que buscava melhorar. Dessa vez, porém, havia sido mais. O gesto era familiar. A dor, incomparável. Os protagonistas os mesmos. Bastava mudar o final.

E foi assim que ele partiu para não mais voltar.

*por Marcelo Camelo, em "Tenha Dó"

domingo, outubro 16, 2005

Da distância que teima em voltar

Levantou-se e partiu. Apressado, descalço, ansioso. Não tinha caminho, nem direção. Desde cedo aprendera a se guiar pelo que não era óbvio. Era sempre assim. Acordava e seguia, fazendo do seu dia o que o dia queria que fosse. Vítima da casualidade, vivia sorrindo. Talvez minimizar as expectativas também minimizasse as decepções. Era uma hipótese, mas ninguém sabia ao certo. Ele não falava. Apenas seguia, cabeça erguida, olhar atento. Para onde, não faria diferença. Bastava ir.

Cada dia era o começo de tudo. Como uma tela em branco que, recebendo pinceladas de preto a esmo, ganha forma e sentido, sombra e luz. Andando, tudo ia se preenchendo. Estrada, tela, vida. Partida virando chegada. Chegada virando sentido. Sem direção, sem noção, sem pensar. O vento mudando de lugar. O silêncio dizendo que sim.

Apenas o coração a esperar...

quarta-feira, agosto 31, 2005

Antes da fuga

Ele olhava para as mãos, fascinado. Talvez nunca tenha reparado antes nos dedos, ágeis, finos e delicados, deslizando sobre as teclas do piano. Não ouvia a música, nem faria diferença. A visão era o sentido principal, olhos parados em contemplação. Não sorria. Mal sabia se respirava. No peito, oco, um sinal de alerta. E as mãos seguiam seu caminho, sua rotina, seu destino.

Um vento leve soprava em seu rosto. A janela entreaberta era a possível culpada, de onde vinha também o raio de sol que se insinuava preguiçoso ao final da pauta. Não era um dia quente, nem frio. De repente nem mais era dia, ou o mesmo. Sabia que as horas de sua vida não respeitavam a imortalidade que os belos momentos mereciam, por isso aprendera a ignorá-las. Contudo, não contava o segredo a ninguém.

Era preciso ser esperto, afinal.

terça-feira, julho 26, 2005

Quando dois e dois são nada

Duas vezes eles se viram, e não mais do que isso seria necessário.

Na primeira, mal trocaram olhares, tímidos ou receosos que eram - só notaram um ao outro, o que bastava naquele espaço mínimo onde pessoas dançavam despretensiosamente. Eram dois estranhos em um lugar mais estranho ainda, com pessoas que pareciam se ignorar, fechadas em seus mundos de luzes, álcool e som. A eles só restava a solidão da normalidade, de quem ainda achava que o ser humano nasceu para se relacionar com o outro, mas eram traídos pela própria falta de iniciativa, e assim ficavam como todos os demais, fingindo não perceber nada que se passava à sua volta. Seria uma noite curta, ainda que eles não a sentissem assim.

Ela queria pegar sua mão. Ele, dizer coisas ao seu ouvido. Só que se afastavam, quase alcançando o limite das paredes. Saíram de lá em horas ímpares, sem serem um par. Sem esperança de se reencontrarem também.

O segundo encontro parecia inadequado, mas inevitável. Fazia sol, havia gente na rua e pouco espaço para pensar. Eles eram filme, e se esbarraram de repente. Ela sorriu desajeitada, ele pegou sua bolsa caída ao chão. Pediram desculpas, mas não se foram. Também nada diziam. Sabiam que não eram dois quaisquer, mas não sabiam como agir para não sê-los. Atabalhoados, seguiram adiante. Ônibus e carros também. Ela na contramão do fluxo, ele na contramão da vida. Talvez pudessem ser felizes assim.

Mas seria o mesmo se ela tivesse olhado para trás?

domingo, junho 19, 2005

Saquarema (ou um lugar de mim que ainda não se perdeu)

Eu via a bicicleta, mas não via mais a rua. Era de barro, eu me lembro, nada daquele cimento que só machuca quando a gente cai e que deixa tudo tão cinza que dá até vontade de pegar o lápis de cor e pintar por cima para ver se o mundo volta a ter vida. Mas só tinha a bicicleta, e eu sabia que precisava subir e andar.

Havia o sol também, eu sentia, mas parecia que o calor que vinha de fora não tirava o frio que batia aqui dentro, e que eu mesmo grande agora não ia conseguir alcançá-lo como um dia achei que ia ser capaz. É longe, eu sei, mas sempre sonhei em ir até lá. Que nem quando vi a lua pela primeira vez. Não, não era a primeira vez, com certeza não, eu já tinha visto antes, mas não apaixonado, e aí é muito diferente. É incrível como tudo muda, e como você cresce, e como se torna pequeno para tanta vontade. O fato é que eu também queria ir até lá, e nunca consegui. Nem a pé, nem de bicicleta - por mais que tentasse, sempre estava longe.

Eu via o balanço, a árvore, a bola jogada no quintal e o verde-amarelado da grama sob o sol do fim da tarde, mas não tinha mais ninguém ali. Se fechasse os olhos, talvez ainda fosse capaz de me ver correndo com meus primos pra lá e pra cá, despreocupados, crianças que nunca deveríamos ter deixado de ser. Ali éramos vivos, éramos amigos, éramos felizes. E de repente a gente cresceu, e o mundo diminuiu, e os sonhos escaparam dos olhos brilhantes para virarem chagas nas mãos duras de realidade. E o que sobrou para hoje, além de pequenos pontos que vivem a cintilar nas nossas memórias?

Havia o vento também, os cabelos sentiam, mas parecia que ele estava a favor de nós, soprando nossos caminhos e dizendo que era preciso seguir em frente, levando a vida a seu sabor. Só que a gente acaba sempre indo contra, e tudo fica tão difícil que uma hora as pernas sentem o cansaço e só nos resta sentar e esperar. Não, não é pra ser assim, a gente não pode ver o filme da vida sentado na primeira fila, precisa ser protagonista, diretor, roteirista... dono. E esquecer essa história de destino, essa coisa de que todos um dia viramos adultos sérios e comprometidos com o bem da humanidade. Um absurdo, se nem o nosso bem a gente se preocupava em fazer, apenas vivia, e isso bastava.

Eu via possibilidades. Eu via estrelas. Eu via vocês. E éramos de novo os mesmos inocentes.

segunda-feira, maio 23, 2005

Finitude

Estendeu a mão e não alcançou nada. Estranhou aquilo, mas tentou de novo. Vazio. Seus olhos, porém, continuavam a ver as formas à sua frente. Não fazia sentido. Era capaz de sentir a energia que vinha, uma força de presente e de passado, com referências que o inquietavam. Tinha a sensação de que as coisas sempre estiveram ali, apenas esperando para serem associadas. Só ele era capaz de ver. E ela. Só que ela já não mais queria enxergar, deixava as luzes se apagarem e as formas se esvaírem, mesmo sabendo que bastava o seu olhar para tudo voltar a existir. Os braços dela agora estavam cruzados, e sozinho ele não conseguia alcançar. Mas tudo lembrava, tudo o chamava, tudo ainda era. Não haveria de sumir, pois já tinha vida própria - não eram coisas simplesmente, mas as coisas deles, construídas, planejadas, sonhadas, com ou sem forma para o mundo, reais. E é por isso que os olhos dele ainda vêem, mas as mãos não conseguem tocar, porque nunca tocaram, nunca puderam sentir como era a matéria. Não que não tivesse desejado; somente não havia ido até lá. Assim, fechava os olhos toda noite esperando não ver mais nada ao acordar, ainda que soubesse quão inútil aquilo era. E se via feliz depois porque as coisas estavam dentro de si, fortes, pulsantes, intensas, e o vazio não era verdadeiro. Promessas, "pontos-em-comum" e o que ainda estava por construir. Tudo como sempre e como nunca. Por isso as mãos dele insistiam em buscar - só cessariam se ele parasse de existir. Os olhos fugiam, mas não tinham por quê. Aquelas luzes jamais iriam se apagar.

sábado, abril 23, 2005

Pequeno dicionário do silêncio e do pensamento

Abria a boca e não emitia um som sequer. Sentia-se preso dentro de seu próprio corpo, os sentimentos pedindo para saírem e ele, angustiado, incapaz de libertar tudo aquilo que apertava o peito. Doía não poder mostrar o que tinha em si, ainda que fosse capaz de compreender tudo aquilo que o cercava. De sua boca vinham apenas grunhidos impossíveis de ser entendidos, um misto de angústia e vontade de liberdade, uma aflição que parecia não ter fim. Talvez por isso seus olhos dissessem tanto, cada olhar imprimindo uma verdade ao mundo que poucos seriam capazes de notar. Mas a visão humana era limitada, ele sabia, por isso, por mais que enxergasse além do óbvio, aquilo era só seu, não havia como compartilhar. E assim muitas vezes pensava em se entregar, desistir, porque o caminho que ele via era só seu, e não tinha sentido seguir sozinho.

Só que havia um farol, então continuava ali. Uma luz lhe dava a direção, e o brilho que vinha do horizonte era tão intenso e reconfortante que o fazia insistir em perseguí-lo. Ali não precisava dos sons, nem dos gestos; quem o visse perceberia que era o lugar certo, e que ali encontraria a paz. Porque não havia palavras que dissessem tudo quanto era necessário naquele instante, que fossem precisas o suficiente para explicar o que só se sentia. Não havia prisão. Não havia corpo. Não havia nada. Mas havia sentido. E era tudo que bastava para ele se sentir bem assim.

Um dia, porém, tudo era escuro. A luz não mais piscava, os sons não mais existiam, o olhar não mais falava. Era só tristeza, um reflexo opaco num espelho partido.

Nunca entendera o que se passara para a vida se transformar daquele jeito. Como não tinha as palavras, era incapaz de explicar.

Melhor seria se ficasse assim.

A isso deram o nome saudade.

domingo, abril 03, 2005

As formas que se tornam parte *

* com os devidos agradecimentos à Amanda pela frase inspiradora do texto.

Ela pedia o silêncio de volta enquanto abria a gaveta da cômoda. Da caixa de madeira, cartas caíram por cima do lençol molhado de lágrimas, abertas grosseiramente com a ânsia típica dos amantes. Sentou-se. As pernas cruzadas, os óculos recostados na ponta do nariz, a luz baixa da luminária escondendo-a na semi-escuridão. Eram palavras agora, não mais do que palavras, mas para ela eram tiros, facadas, tapas. Era dor. E só ouvia barulho agora dentro de si mesma. Cada parte sua parecia gritar, querendo ir embora de vez. Mas ela nunca se separava, e só o que fazia era voltar ao passado, como se assim o tempo fosse passar. E toda noite aquelas cartas estavam ali, aquela cama estava ali, e ela não estava mais.

O ritual era sempre o mesmo, e toda noite começava e terminava da mesma forma. Lia cada palavra já decorada, levantava-se, abria a janela, respirava fundo como se pudesse tragar a pureza da lua lá fora e retornava para sua penumbra, deixando o pensamento vago e o coração aflito. Abria um livro, olhava para as outras palavras, aquelas que eram ditas para todos e para ninguém, e sabia que ali não havia o seu sentido. Só não percebia que nas cartas também não, porque aquela não era mais sua vida, nem ele era mais seu. Como não era mais seu o sangue que escorria quando fechava os olhos ou os sussurros que saíam de dentro de si quando tentava se calar. Só ela ainda acreditava que era ela.

Talvez porque a porta ainda se movesse, o armário se tornasse imenso e ela fosse tão pequena dentro daquele quarto, não conseguia se encontrar mais em si. Mas a verdade é que era mais dúvida que certeza, e não havia como deixar de ser assim.

Ali, esperava. E escrevia apenas o que precisava ainda dizer.

"Lembrei de você no meu fim também..."

segunda-feira, março 07, 2005

Sobre o que é real e coisas pequenas

Achava que conhecia todas as dores do mundo, mas no seu peito estourava agora uma que era avassaladora, única. Mal conseguia respirar, e em sua consciência pairava a dúvida de um outro destino não traçado. Pesava. Não o peso do mundo, como se costuma dizer; um ainda maior, insuportável: o do vazio. E aquilo que parecia paradoxal nele tomava forma, cristalizando uma tristeza que cismava em se refugiar na mudez de um soluço contido, nas lágrimas amargas que nasciam e morriam nos olhos. Era dor e inverno, melancolia e outono. Era silêncio, um silêncio injusto e indesejado, característico das grandes perdas. Era solidão. Era ausência. Era.

Porque ela foi. E se foi.

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

àsvezesquasenuncaparasempre

Ela fechou os olhos, ele esticou a mão. O rosto fora tocado de leve, enquanto a lágrima que escorria de um dos olhos era desviada de seu fatídico destino, o chão. Não havia som ali, nem mesmo o choro contido de um sofrimento incomum. Talvez nem respiração existisse naquele momento; apenas um gesto e nada mais. O tempo até poderia ser medido, se um instante como aquele coubesse em um lugar pequeno como o universo, mas eles mesmos não desejavam saber. Estavam, eram, foram. O que mais precisava existir?

Ele mexeu os lábios, ela levou seu dedo a eles. Não havia porque buscar palavras, pois elas não seriam capazes de significar algo assim. Não devia existir movimento, sob o risco de esvanecer o belo. Eram dois e um só, a união perfeita da imperfeição humana. Impossível definir o que se passava em corações paradoxais como aqueles: eram dor e alegria, distância e companhia. Completavam-se, apenas. Não sabiam ainda, é verdade, e talvez nem saberiam um dia, mas a incógnita não os incomodava. Já sabiam o principal.

Havia o toque da mão, o rosto lívido e o ar rarefeito, nada mais. E tudo era suficientemente único ali.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

Reinvenção

Ele olhava para as mãos trêmulas e sentia que havia algo de errado. Ainda que não sentisse nada diferente, seu corpo parecia reagir de forma estranha ao que o cercava naquele instante. O cenário permanecia intacto: vidros quebrados, móveis revirados, fotos e cartas espalhadas. Não conseguia lembrar a origem do caos que se instaurara ali, apesar de saber que tinha sido ele o responsável por tamanha destruição. Havia perdido o controle, mas não conseguia ainda se dar conta disso.

Seus olhos encheram d?água quando avistaram, no sofá, um velho porta-retratos destruído. Tinha colocado fim à única lembrança de sua infância que ainda guardava: uma foto de quando era criança, em algum carnaval já distante, inocentemente fantasiado de Super-homem. Não conseguiu deixar de perceber a ironia do momento: o pequeno infante, vestido de super-herói, despedia-se do mundo de fantasias e surgia como um homem adulto, fraco, indefeso, despreparado. Uma lágrima tímida escorreu pela face, então.

Caminhava pela sala do apartamento, analisando o estrago que ele mesmo tinha promovido, ainda que sem consciência. Nada, porém, doía mais do que aquele porta-retratos abandonado no sofá, desfalecido. Procurava em cada objeto fora da ordem natural a razão para aquilo tudo ter se originado, mas só obtinha novas perguntas. Voltava a partes remotas de seu passado a todo instante, e se odiava mais por isso. Preferia passar longe de tudo aquilo, e só agora notara o quanto estar ali ao longo de tanto tempo o fazia mal.

De súbito, parou frente ao espelho. Examinou-se atentamente. Os cabelos brancos começavam a surgir, apesar da idade. Seu semblante trazia o peso de quem vivera infeliz até então, com um sorriso que nunca se realizava e um olhar que trazia dor. Da rua, ouvia vida. Sons de folia. Correu até a janela e observou a alegria lá embaixo. Sentou-se, as pernas balançando ao ar. Era um dia quente. Virou-se para a sala, notou mais uma vez a confusão que havia causado ali e entendeu finalmente a grande metáfora que havia feito de sua vida.

Pulou para dentro e correu para a rua.

Crescera ouvindo que o ano só começava depois do Carnaval.

Talvez ele também precisasse ser assim.