domingo, abril 28, 2002

Ciclo

Era a terceira vez que ela passava por ali. Parecia querer se fazer notar, pedir olhares atentos e pensamentos ansiosos. Caminhava com calma, como se o tempo tivesse parado e ela não quisesse ir a lugar algum.

Era a terceira vez que ele a via passar à sua frente. Seus olhos não conseguiam ser indiferentes e mais uma vez a seguiam afoitos. Sentia-se dividido entre falar algo ou apenas seguir contemplando-a, mesmo sabendo que qualquer uma dessas atitudes constituia-se como inútil.

Ela pára. Vira-se para trás. Seus olhares se cruzam por um breve instante. Ele respira fundo. Abre a boca como se fosse mencionar algo, mas desiste e abaixa a cabeça. Nela, o sorriso que se principiava logo desaparece, dando espaço à vaguidão. Vira-se novamente e segue seu caminho. Ele permanece sentado.

O dia ainda era claro quando ele se levantou e se colocou a andar sem rumo certo. Não sabia ao certo quanto tempo se passara - segundos, minutos, talvez horas. Ela não estava mais presente. Fora vencido mais uma vez por sua inconstância, ainda que tenha visto naquele olhar uma esperança perdida.

Um vazio tomou-lhe o peito. Estava sozinho, tal qual imaginara um dia estar por se fechar em um mundo de medo. Angustiado, olhou para a frente e decidiu continuar, já se acostumando às derrotas diárias em tentativas quase sempre inexistentes. Não haveria de ser diferente agora.

Era a última vez que ele parava por ali.

terça-feira, abril 23, 2002

Por Um Ser Incompleto

Outro dia seu sorriso passou por mim

Lindo, inocente, reconfortante

Um sorriso como nunca vira

Talvez ele fosse assim por tudo e com todos

Talvez sequer tivesse a intenção de sê-lo

Mas pareceu que ele o era só para mim

No mesmo dia vi você dormir ali

Quieta, inocente, apaixonante

Simples como eu nunca imaginara

Talvez seu sono fosse o mais belo sono

Talvez eu fosse feliz por vê-la assim tão perto

Mesmo sabendo que aquele momento iria passar

E eu não iria conseguir esquecer

Talvez o tempo tenha parado por algumas horas

Talvez meus olhos tenham marejado ao pensar no depois

Talvez meus dedos tenham tocado de leve seu rosto

Talvez eu ainda fosse eu

Mas depois de você, tenho minhas dúvidas

quarta-feira, abril 17, 2002

Do Que É Felicidade

- Por que você não sorri?

- Porque eu não gosto.

- Como assim não gosta?

- Não gosto, ué! Qual o problema?

- É estranho...

- Sei...

- Mas você tem um sorriso tão bonito...

- Que nada...

- Ah, pára com isso, vai... você não está feliz?

- Não.

- Nem por eu estar aqui?

- Deveria?

sexta-feira, abril 12, 2002

Bola de Papel

O papel continuava em branco, exceto por uma discreta mancha de tinta no canto inferior esquerdo. Uma mão, a que segurava a caneta-tinteiro, parecia frágil, como se não suportasse o peso daquele pequeno instrumento. A outra, mais decidida, sustentava a testa com força, como se ajudasse em um esforço máximo de concentração.

Retrato-vivo, ele estava parado naquela posição há minutos. Os olhos miravam o espaço em branco em tom de súplica, pedindo compreensão e auxílio daquele que um dia fora seu maior companheiro. Não obtia qualquer resposta. Suspirou profundamente e tentou rabiscar algo na folha. A imprecisão das palavras irritou-o a tal ponto que quase atirou a caneta de encontro à parede. Na mesa iluminada por uma pequena luminária de querosene, sua angústia parecia crescer.

Levantou-se e caminhou até a janela. Procurou estrelas no céu mas só as encontrou em seu pensamento. A noite era fria, como todas daquele mês. Olhou mais uma vez o papel em branco. Jamais imaginara uma metáfora tão perfeita para si mesmo. Vazio. Puxou a cadeira com sutileza e se posicionou mais uma vez diante daquilo que se tornara o seu maior desafio.

De súbito, a caneta agora percorria a superfície com desenvoltura. Parecia ter vida própria. Uma. Duas. Três linhas. Parou mais uma vez. Seus olhos acompanharam afoitos o que escrevera até ali. Fecharam-se lentamente. Abriram, porém, a tempo de presenciar as palavras uma a uma serem riscadas.

Havia agora uma grande mancha preta na folha. Com as duas mãos, levou-a à altura do queixo e a amassou com um prazer antes nunca sentido por ele. Voltou à janela e atirou a pequena esfera que se constituíra dos pedaços de sentimentos escritos.

Pela primeira vez entendera o quanto era difícil escrever o amor.

sábado, abril 06, 2002

O Simples Que Se Torna...

Era a terceira vez que o elevador parava em menos de 1 minuto. 5º andar. Quase duas horas da tarde e ainda faltavam 14 andares para que chegasse até o seu. Fazia um calor infernal ali dentro e as três pessoas que lhe serviam de companhia não eram nem um pouco interessantes, pelo menos à primeira vista. 6º andar. O elevador parou de novo. Ninguém entrou e ninguém saiu. A senhora que estava ao lado vira-se para ele e solta a típica pergunta daqueles que querem começar uma conversa mas não sabem como.

- Tá calor aqui dentro, não?

Ele se limitou a acenar com a cabeça positivamente, ao mesmo tempo que pensava em várias respostas aplicáveis àquela situação ridícula.

- Não, não tá calor não, sua velha estúpida! Na verdade isso que está escorrendo do meu rosto não é suor... é água! Estou tentando mudar de estado físico para ver se consigo escapar daqui. Ih, acabei de revelar minha identidade secreta... agora você já sabe quem é o Homem-água das histórias em quadrinhos.

- Calor? Não... tá até um vento fresco aqui. Eu acho que a senhora está é ficando excitada com a minha presença ao seu lado. Controle-se, minha tia, eu não curto coroas não...

- Você tá com calor? Ah, essas mulheres depois da menopausa...

O elevador parou de novo. 7º andar. Não era possível. Os 4 se entreolharam. Nenhum deles fez menção de sair. Do lado de fora, também não havia ninguém.

- Só podem estar de sacanagem comigo, soltou ele em voz alta.

A jovem moça que também estava ali dentro deu uma discreta risada. Ele a reconheceu de algum lugar, mas não sabia de onde. Talvez já tivessem se esbarrado alguma outra vez naquele mesmo elevador. Não era difícil. O horário de almoço das empresas do prédio costumava coincidir e eram apenas 2 elevadores para levar todos de volta ao trabalho depois da breve pausa. De qualquer forma, aquilo não era o que importava. O fato é que ela era muito gostosa. Vestia uma camisa social de seda que deixava transparecer um sutiã meia-taça, branco e rendado, segurando os seios fartos e uma saia azul na altura do joelho que remetia a um uniforme de colegial. Já estava se imaginando em uma transa tórrida com ela ali dentro quando foi despertado de seus pensamentos por um tranco mais forte do elevador.

- Que merda é essa agora?

A porta não se abriu. O indicador digital dos andares marcava o 9º. Só faltava aquela merda ter enguiçado agora.

- Aiiiii, meu Deus! Bem que a mamãe sempre falou que era perigoso andar de elevador! Por que eu nunca acreditei nela?

Os olhos dele fitaram a última pessoa que lhe fazia companhia naquela incômoda situação. Como se fosse pouca a desgraça de ficar preso num elevador às duas da tarde no Centro da cidade do Rio de Janeiro, havia um gay ali e ele resolveu ter um ataque histérico. Não, não era possível. Afrouxou a gravata e respirou fundo. Tinha que manter o controle agora.

- Não é possível! Eu joguei pedra na cruz! Dá pra gazela se controlar um pouco? A situação já não tá ruim o suficiente?

O silêncio que se criou em seguida o levou à consciência de que havia se exaltado além do que deveria com aquilo tudo. A jovem gostosa agora o olhava com ar de desprezo. A velha tinha as mãos cobrindo a boca, quase em sinal de prece. O rapaz homossexual mantinha o rosto dirigido ao chão, com uma expressão que variava entre a vergonha e a raiva.

Nada do que se dissesse agora poderia tirar o incômodo que se havia criado nos quatro companheiros de elevador. Aquele prédio com certeza nunca fora tão alto. Seguiram-se mais alguns segundos sem que nenhuma voz soasse no pequeno espaço de pouco mais de 3 metros quadrados.

O som do elevador voltando a se mover foi o que mudou aquele quadro quase inerte. Ele soltou um suspiro aliviado. Faltavam apenas 4 andares agora e tudo estaria resolvido. Provavelmente demoraria um bom tempo para rever qualquer um dos ali presentes, isso se um dia voltasse a ver.

O elevador ainda parou rapidamente no 11º andar, quando saltou a pobre senhora, que permanecia com as mãos em frente à boca e que sequer desejou um “boa tarde” ao sair dali. No 17º, desceu a moça, apressada. Provavelmente estava atrasada da volta do almoço e o chefe a faria pagar um boquete para compensar aquilo. Ah, como ela era gostosa. Aquela saia...

Seus pensamentos se foram quando no indicador luminoso apareceu o número 19. Olhou para o lado e reparou que o outro rapaz preparava-se para sair também. Não se conteve:

- Você vai descer aqui também?

- Vou. Algum problema?

Nem se deu ao trabalho de responder. “Eu vou lá perder meu tempo com um gay!”, falou em tom quase inaudível.

Cumprimentou a secretária e entrou na sala. Logo que se sentou à mesa, o telefone tocou. Na linha, o advogado que coordenava o escritório o convidava para que viesse conhecer o filho do dono e mais novo advogado dali.

Desligou o telefone suando frio. Era óbvio o que viria a seguir. Caminhou a passos lentos pelo corredor que levava até a sala de seu chefe. Sentia-se tal qual um prisioneiro condenado à pena de morte, rumo à cadeira elétrica.

Ainda tremendo, girou a maçaneta. Trancada. Ouviu pequenos sussurros vindos de dentro da sala e imaginou o que se passava lá dentro. Sorriu com o canto da boca e se virou para voltar ao trabalho quando escutou o barulho da porta se abrindo. Uma mão jogou ao chão um envelope pequeno e pardo, sem qualquer inscrição do lado de fora.

Não teve dúvidas de que a carta era para ele, por isso mesmo não hesitou em abrir.

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“Favor passar no departamento pessoal para assinar sua demissão.”