domingo, abril 03, 2005

As formas que se tornam parte *

* com os devidos agradecimentos à Amanda pela frase inspiradora do texto.

Ela pedia o silêncio de volta enquanto abria a gaveta da cômoda. Da caixa de madeira, cartas caíram por cima do lençol molhado de lágrimas, abertas grosseiramente com a ânsia típica dos amantes. Sentou-se. As pernas cruzadas, os óculos recostados na ponta do nariz, a luz baixa da luminária escondendo-a na semi-escuridão. Eram palavras agora, não mais do que palavras, mas para ela eram tiros, facadas, tapas. Era dor. E só ouvia barulho agora dentro de si mesma. Cada parte sua parecia gritar, querendo ir embora de vez. Mas ela nunca se separava, e só o que fazia era voltar ao passado, como se assim o tempo fosse passar. E toda noite aquelas cartas estavam ali, aquela cama estava ali, e ela não estava mais.

O ritual era sempre o mesmo, e toda noite começava e terminava da mesma forma. Lia cada palavra já decorada, levantava-se, abria a janela, respirava fundo como se pudesse tragar a pureza da lua lá fora e retornava para sua penumbra, deixando o pensamento vago e o coração aflito. Abria um livro, olhava para as outras palavras, aquelas que eram ditas para todos e para ninguém, e sabia que ali não havia o seu sentido. Só não percebia que nas cartas também não, porque aquela não era mais sua vida, nem ele era mais seu. Como não era mais seu o sangue que escorria quando fechava os olhos ou os sussurros que saíam de dentro de si quando tentava se calar. Só ela ainda acreditava que era ela.

Talvez porque a porta ainda se movesse, o armário se tornasse imenso e ela fosse tão pequena dentro daquele quarto, não conseguia se encontrar mais em si. Mas a verdade é que era mais dúvida que certeza, e não havia como deixar de ser assim.

Ali, esperava. E escrevia apenas o que precisava ainda dizer.

"Lembrei de você no meu fim também..."