sábado, janeiro 18, 2003

Dia de Festa

“Acho graça ver que os discos continuam os mesmos, mesmo a música entrando no meu ouvido diferente. Tudo porque os discos cantam só pra gente.”

Disse isso e se sentou na poltrona velha da sala pouco iluminada. O frio que anunciava a chegada da noite entrando pela janela fez com que ela se arrepiasse por um breve instante, mas assim que se acomodou o calor das taças de vinho tinto entornadas durante todo o dia tomou seu corpo novamente.

“Gosto dessa vitrola”, ele disse. “Na verdade, acho que gosto do que ela me traz de volta, sabe? Sei lá, era um tempo bom aquele, não era?” Seus olhos procuraram conforto nos da irmã. Ela acenou com a cabeça positivamente. “Era bom quando a gente pegava a coleção dos Beatles da mamãe e ouvia o dia todo, sonhando com o dia que seríamos famosos. Lembra disso, Lu? Por que tiraram isso da gente?”

“A gente cresce, Rafa. Não tem jeito. Também sinto falta, foi um tempo bom, mas passou. Não volta mais. Era bom sonhar, mas hoje a gente tem que ver as coisas reais mesmo.”

Esticou a mão e fez um afago na cabeça do irmão. Apesar dos 26 anos, ele às vezes era mais criança que ela, parecendo despreparado para encarar o mundo com olhos de adulto. Isso, de certa forma, doía bastante nela, que aos 18 já se cobrava como responsável pelo rumo da sua vida.

“Não devia ser assim.”, ele falou bem baixinho.

O coração dela apertou. Sabia que tudo aquilo era difícil demais para o irmão, e pela primeira vez desde que tudo acontecera teve vontade de chorar com ele. Mas não podia, precisava ser forte. Sua mãe lhe ensinara desde cedo a ser assim, e por mais que todos a considerassem fria e distante, era um comportamento que lhe dava agora a segurança necessária para encarar mudanças tão bruscas.

“Rafa, olha pra mim. Não fica assim, vai. Você precisa se acostumar. Sério, você precisa crescer. O mundo de fantasias acabou, você não percebe isso? Meu Deus...”

Ele a encarou de forma séria. Levantou-se do chão onde sentara ao lado da poltrona e caminhou até a vitrola. Abriu a tampa com raiva, puxou um dos discos cuidadosamente arrumados na prateleira acima e colocou para tocar. A música alta preencheu o ambiente rapidamente. Lucia levou as mãos aos ouvidos e fez uma careta de desaprovação. Rafael sorriu e esticou a mão direita em sua direção.

Dançaram pela sala como faziam quando eram crianças ainda inocentes na casa dos pais. Sentiram-se mais leves e mais distantes de tudo naqueles minutos que puderam sonhar de novo. No dia seguinte, tudo voltaria ao normal. A música soaria diferente mais uma vez, o vinho não faria mais efeito. Mas, naquela noite, ao menos naquela sala, o que soava aos ouvidos tinha gosto de nostalgia. Apenas os dois, os mesmos discos velhos dos Beatles tocando e a velha vitrola. Simples como sempre deveria ser.

*com a colaboração especial da amiga Natalia Warth, autora do parágrafo inicial.*