quinta-feira, setembro 11, 2003

Um Pouco Mais

I

As quatro horas não chegavam, e chovia. Chovia como poucas vezes chovera por ali, gotas finas e quentes, lembrando as lágrimas que vez por outra brotavam dos olhos dela. Mas nada mudava, e as quatro horas não chegavam. Frio, muito frio. A solidão fazia-se sentir nela naquele instante.

Tomava seu café lentamente, a fumaça parecendo brincar em frente ao seu rosto, e um sorriso estático, falso talvez, insinuava-se para os olhares alheios. Seu ar era sóbrio, ainda que seu semblante carregasse uma dor que parecia não querer se esconder. Estava sentada em uma mesa de canto, sozinha, quase perdida em meio à pouca luz. Quase. Perder-se-ia caso não houvesse mais ninguém ali, caso os espaços fossem imensos, mas próxima a tanta gente sua beleza incomum impossibilitava uma ausência de percepção. Um clichê tornando-se real, a personagem colorida de um filme em preto e branco.

Uma garçonete aproximou-se de sua mesa. Mascava um chiclete e andava desajeitada, implorando por desejos masculinos. Recolheu a xícara e anotou algo em seu bloco, olhando para a moça com desdém. Ela sorriu em gesto automático, balbuciou algo e voltou seus olhos para a parede, com charme que não lhe era caro. Ali estava a diferença, ali estava o especial. 'Só ela poderia ser assim', as paredes pareciam dizer. A mim, só restava acreditar. Permaneci sentado no canto extremo, estudando seus gestos como um aluno devoto, dedicado. A distância era muito maior que as doze mesas, sugeria milhas ou léguas, um farol longínquo para um marinheiro perdido em um oceano de incógnitas. E não havia como chegar.

II

O tempo que passa não é mais o meu tempo. Só ouço a chuva, mas não sinto seu gosto, seu cheiro. Ela não me diz mais nada, porque tudo acontece igual, e eu não sei mais ser assim. As quatro horas logo vão chegar, e nada vai ser diferente. Frio, muito frio. Se existe solidão, ela está aqui.

Preciso de café para me manter viva. Não ligo para as lágrimas, não me importo de sorrir por conveniência, não sinto. De onde vem minha calma? A fumaça passeia a minha frente e isso é tão importante quanto o quadro naquela parede. Arte, fé, brinquedo - quem sou eu no meio de tantos nãos? Nada além de mim, outra como eles. Eles. Os donos dos olhares, os sedentos de porquês. Vocês não entendem? Sou essa, branca, vaga, nula. Perdida, talvez. Cansada das cores, descrente de tudo. Menos do café que me aquece a alma. Sorri.

E ela vem de novo, papel e caneta na mão. Desperdício, puro desperdício. Há mais nas palavras do que essa suja consegue perceber. Mas sorrio para ela, ela me traz a vida. 'Um café, por favor'. E sei que você me olha com desdém, mas não ligo. Você é fraca, como eles. Carente de desejos, como eles. Só eu tenho as paredes, e só elas falam para mim. Doze mesas e ele está ali. O que olha, se não consegue ver? Há um mar entre nós, você está disposto a nadar? Consegue ver a luz que mostro a você? É longe, é forte, é perigoso. Vivo aqui para mim, e não acredito que você possa viver também. Há um barco, talvez, mas é preciso achar. Meus olhos não são de ninguém, só as paredes os têm. Está escuro. Um dia poderemos nos encontrar. Até.