domingo, outubro 13, 2002

Silêncio (texto-clichê)

Ele olhou para o relógio na parede mais uma vez. Nos últimos vinte minutos, esse gesto havia se repetido mais de dez vezes. O pé direito batendo inquietante no chão, em compassos quaternários, era a reprodução mais instantânea de sua ansiedade. A poltrona começava a se tornar desconfortável, mais até do que o corpo que coibia o vôo de sua alma, e o silêncio atrapalhado pela maquinaria que girava os ponteiros não era o aliado de antes.

Levantou-se e pegou mais um pouco de vinho tinto. A noite já ia alta e quente, incomum para aquela época do ano, mas mesmo assim se sentia à vontade para aquele gesto invernal. Ao se sentar novamente, viu o porta-retratos que ficava na mesa de centro. Vazio. Não conseguia lembrar desde quando estava assim, muito menos qual havia sido a última foto a ocupar aquele lugar que deveria ser de destaque, só que isso não o incomodava. Muito além de uma representação estática, precisava agora de algo tangível. Voltou sua cabeça para a parede do relógio e os minutos ainda demoravam a passar.

O telefone ao seu lado, mudo, berrava por atenção. O toque incessante de outras épocas parecia esquecido, e mesmo a poeira que tomava conta do aparelho não era capaz de dar a dimensão da ausência. Pela primeira vez, ele o olhou com vontade de usá-lo. Abriu a pequena caderneta de números anotados em formas tremidas e letras corridas e procurou alguém para quem valia a pena ligar. Os nomes que se seguiam pouco diziam, até que a letra J se fez notar em cores, quebrando sua visão monocromática.

Uma palavra configurada como quebra de sentidos. Não se imaginava mais capaz de ser tomado por algo assim, muito por conta do tempo que já se ia perdido na memória, mas estava de novo imerso naquilo que tanto desconhecia. Em momentos assim, sentia-se estranho a si mesmo, uma incógnita que o mundo adorava ignorar, e procurava respostas a perguntas ainda não feitas. Era o clichê personificado, uma convergência de direções rumo ao nada.

Sua covardia o impediu de ligar. O mundo quase autista em que se encerrava a sua vida mantinha-se como norteador, como o ponto de segurança. Modificar a lógica da inércia não lhe era mais atraente, ainda que soubesse ser erro e omissão não buscar algo tão importante que se perdera por obra do tempo e da imaturidade. Olhou mais uma vez para a máquina que se movia lentamente na parede e decidiu, em caso raro, agir sem o respaldo de uma máscara.

No dia seguinte, haveria de falar pessoalmente com ela e colocar um fim na angústia que se apossara há quase uma década de seu interior. Precisava reorganizar o seu próprio caos, por isso não se calaria mais.

Do frio que se projetava dele naquela noite quente, tomou forma um único sentimento, aquele em que nunca acreditava ver tomando a si.

Mas já era tarde demais para a luta ser vencida, e o vento seco que passava lento pela janela levou consigo as vontades adormecidas. Os ponteiros do relógio se calaram e o pé não mais bateu compassado no chão.

Despediu-se da vida como sempre a encarara, sem entender o que fazia ali.