Amores Brutos
Já passava de meio-dia quando ela se levantou da cama. Era sábado, dia ensolarado, e não havia compromissos que a fizessem ficar preocupada por estar acordando tão tarde. A noite anterior tinha sido muito boa, e dificilmente conseguiria apagar da memória pelo resto de sua vida tudo o que havia acontecido.
Tinha sido tudo muito rápido. Um simples telefonema e pronto: lá se foi aquela rotina enfadonha de toda sexta-feira, regada a filmes antigos de locadora e pipocas de microondas. Há tempos vinha querendo fazer de seus dias algo diferente, mas por falta de opção ou companhia, acabava sempre ficando em casa. Mas agora...
Aprontou-se em menos de 40 minutos, e antes mesmo que pensasse em desistir, já estava descendo no elevador, rumo à garagem. Ao entrar no carro, reparou que não havia um cd para ouvir. Como não havia tempo para voltar ao apartamento, contentou-se em sintonizar uma rádio que tocava algo parecido com Barry White. Girou a chave na ignição, abriu o portão e saiu.
Lá fora, as luzes dos postes pareciam iluminar de forma diferente. O céu estava limpo, repleto de estrelas que ela achou nunca haver reparado antes. Quase não havia carros na rua, o que não era comum para um noite de sexta-feira. Pensou ser aquilo muito estranho, mas como nada poderia estragar o que iria fazer, continuou seu caminho.
Não demorou mais do que uma hora para chegar lá. O cenário era perfeito: inúmeras pessoas, todas bem vestidas, aglomeravam-se à porta. Sem muitas dificuldades, avistou a autora do telefonema. Caminhou apressadamente até ela e saudou-a de forma contida, bastante discreta. Estava ansiosa.
Juntas, andaram até o quarteirão seguinte. Pararam. A amiga caminhou até uma van estacionada a poucos metros e fez sinal para que a seguisse. Abriu a porta lateral e mostrou com orgulho o que lá havia. Era um arsenal digno de grandes guerrilhas. Armas e mais armas que só vira antes em filmes hollywoodianos. Era sublime.
Colocou um pedaço de meia-calça na cabeça. Em seguida, esticou os braços e apoderou-se de uma submetralhadora. A amiga ainda lhe entregou uma granada, para o caso de ser necessária uma medida "mais enérgica", e mostrou-lhe o fuzil que iria utilizar. A munição era vasta e, com toda certeza, mais do que suficiente para o que iriam fazer.
Entraram na van e seguiram até o local de destino, prontas para o grande ato. Em menos de 5 minutos, entornaram uma garrafa inteira de vodka. Era preciso uma última dose de coragem. Olharam para fora e repararam que os outros olhos não se concentraram nelas. Perfeito.
Foi tudo tão rápido que não possibilitou qualquer reação. Em pouquíssimo tempo, avistava-se algo em torno de uma centena de corpos, todos maravilhosamente manchados de vermelho. As duas, sorrindo, regozijavam-se, enquanto a van saía rápido do local do crime. Estava feito.
Começava a preparar seu café da manhã quando batidas incessantes à porta tomaram de súbito o ambiente. Ficou assustada. Abriu apenas uma pequena brecha e viu que se tratava
de sua comparsa, com uma garrafa de champagne em uma mão e uma caixa bem embrulhada na outra.
Comemoraram com prazer a perfeição daquele gesto insano. A caixa, porém, permanecia intocada. A amiga fez então um gesto para que a abrisse. Tirou o laço com suavidade e levantou a tampa. Olhou o que havia dentro e temeu que fosse verdade.
A explosão foi devastadora.
Nos destroços, os bombeiros encontraram incrivelmente intacto um pequeno papel no qual se lia, com letras tremidas, uma frase que parecia justificar tudo aquilo.
"O melhor só se adquire às custas de um grande sofrimento. Agora estaremos juntas."
E percebeu-se então que não havia amor tão forte que não fosse doentio.