Amicitia Omnia Vincit
Eles se conheceram quando tinham por volta de 13 anos, ainda na sétima série. Foi durante uma aula de educação física. Jogo de futebol. Por não fazerem parte de nenhuma "panelinha", ficaram de fora das 3 primeiras partidas. Enquanto viam os demais garotos discutindo para ver que equipe jogaria sem camisa, começaram a conversar sobre amenidades da vida estudantil. O ano letivo iniciara-se há poucos meses e começava ali uma amizade que duraria por alguns anos.
Vinicius adorava desenhar e vivia fazendo caricaturas das pessoas com quem convivia. Daniel fazia teatro desde os 10 anos de idade e sonhava trabalhar na televisão. Em comum, o gosto pelo basquete e a aversão a matérias que envolviam números. Além disso, ambos eram muito tímidos, mal falavam com os colegas de classe. Nunca eram chamados para as festinhas de final de semana e nem participavam das brincadeiras que rolavam no recreio.
Durante as aulas, sentavam-se juntos, sempre no início da sala, já que a parte de trás era tomada pelos "populares" - aqueles que adoram fazer bagunça e acham que são o maior sucesso com as garotinhas por tirarem onda com a cara de todos e serem expulsos das aulas constantemente. Por conta disso, os dois começaram a ser considerados esquisitos pelos demais alunos. As garotas riam quando passavam; os garotos esbarravam caso ficassem no caminho, fingindo que nem sequer os viam.
Não demorou muito para que os comentários maldosos e típicos de crianças que começam a descobrir sua sexualidade surgissem. Logo os dois estavam sendo chamados de "viadinhos", "boiolas" e outros apelidos do gênero. Em princípio, tentaram ignorar o que era dito. Com os boatos se espalhando, porém, um incômodo foi crescendo e Vinicius sugeriu que se afastassem um pouco, o que Daniel aceitou prontamente.
Isso não durou mais do que um mês, pois como não falavam com mais ninguém, o isolamento foi inevitável. Retomaram a amizade e decidiram ignorar o que as pessoas diziam. Aos poucos os boatos foram sumindo, terminando de vez quando Vinicius começou a namorar, no ano seguinte, uma aluna nova no colégio. Essa relação, aliás, iria durar até o seu primeiro ano de faculdade, quando seriam separados por forças maiores do que a vontade de ambos.
Agora Daniel estava ali, em pé diante da cama do hospital, olhando seu amigo de infância deixando a vida sem que pudesse fazer qualquer coisa para evitar. Leucemia. Apesar de todo um ano de tratamento intensivo desde que se descobrira a doença, seu organismo parecia não ter uma reação mais efetiva. Na sala de espera, Juliana, a namorada de tantos anos, chorava copiosamente, abraçada à mãe de Vinicius. O pai, desesperado, fumava um cigarro atrás do outro, esperando algum milagre que revertesse a gravidade do quadro.
Lá dentro, Vinicius permanecia imóvel. Os tubos enfiados em suas vias respiratórias e o soro nas veias aumentavam a tristeza do ambiente. Seus cabelos ralos e seu rosto magro denunciavam que a batalha estava sendo perdida. Os olhos permaneciam fechados, como se estivessem em sono profundo. Daniel controlava-se para não chorar, ao mesmo tempo que sua mão pairava sobre a do companheiro. Apesar de muito abalado, não saía de seu lado. Estava no hospital há 4 dias, desde que uma parada respiratória levara Vinícius para lá.
Um médico chegou ao quarto. Em voz baixa, pediu que ele se retirasse dali, pois precisava fazer mais alguns exames. Daniel atendeu ao pedido, apesar de sentir que aqueles eram seus últimos momentos ao lado do amigo. Juliana abraçou-o com carinho. "Tudo vai ficar bem, você vai ver", falou ela sem a menor convicção. Ele olhou para os pais de Vinicius e reparou que já estavam desacreditados. Seus olhos encheram d'água. Não havia mais nada a fazer. Resolveu ir para casa e esperar pela notícia inevitável.
Ainda de madrugada, um telefonema rompeu o silêncio da casa. O choro de Juliana do outro lado da linha já dizia tudo. Levou as mãos à cabeça e se pôs a chorar também. Desligou o telefone e chamou um táxi. Não tinha condições de dirigir. O caminho pareceu durar muito mais do que deveria, o que só aumentava seu desespero. Assustado, o motorista até pensou em perguntar o que acontecera, mas desistiu logo. Levou seu passageiro até o hospital sem sequer trocar uma palavra.
Daniel juntou-se à família de Vinicius no quarto onde o amigo chegara ao seu fim. Juliana estava sentada em um canto, segurando um copo com água. Era visível que estava sob o efeito de calmantes. Ele foi até ela e segurou sua mão. "Por que logo ele?", perguntou a jovem. Daniel abraçou-a e choraram juntos por alguns minutos.
A comoção generalizada deu lugar ao desespero quando a mãe de Vinicius gritou seu nome e se debruçou sobre o corpo do filho. Daniel sentiu um aperto no coração, uma angústia inimaginável. Juliana abaixou a cabeça, cobrindo os olhos com as mãos. O médico pediu a todos que se retirassem do quarto, pois precisava tomar as últimas providências para a remoção do corpo.
A perda de um amigo, de um namorado, de um filho daquela maneira não seria jamais esquecida por quem com ele convivera. Daniel pediu transferência da faculdade de História e foi morar sozinho em uma cidade do interior. Juliana, após dois anos de terapia, conseguiu retomar seus estudos e estava prestes a se formar no curso de Relações Exteriores. Os pais, como não poderia deixar de ser, sentiram a ausência do filho dia após dia até o final de suas vidas.
Um pacto silencioso e honesto se consolidara após o último suspiro de Vinicius naquela madrugada de outono, e permaneceria acompanhando a todos ao longo dos anos que se seguiram, bem como a lembrança daquele rapaz que tanto ensinara com sua dor e com a perda da luta pela vida. Daquele dia em diante, acima de qualquer coisa, estar vivo tornar-se-ia motivo de felicidade e de esperança para eles.
Como deveria ser para todos que têm o prazer de acordar toda manhã e saber que ainda estão ali.