domingo, setembro 23, 2001

Das Palavras

A chuva caía forte do lado de fora. Em seu quarto, Beatriz ouvia com enorme prazer o som das gotas batendo na janela. O som ligado em volume baixo transmitia a voz de Elis Regina suavamente, quase como uma velha canção de ninar. Deitada na cama, observava o teto branco e imaginava se havia realmente feito a escolha certa. Não precisava ir muito longe com seus pensamentos, porém. O sorriso estampado em sua face era o maior indicador disso.

É verdade que tudo acontecera de forma bastante rápida. Abrira os olhos determinada manhã e sentira que era hora de mudar. Viver daquele jeito não era mais possível e as opções que figuravam em sua mente sugeriam medidas enérgicas. Da teoria à ação foi tudo muito simples. Levantou-se da cama, tomou um banho e vestiu seu melhor vestido. Colocou os brincos mais caros, passou batom cuidadosamente e ajeitou os cabelos. Estava pronta.

Saiu de casa apressadamente, levando debaixo do braço uma pasta. Caminhava a passos largos pela rua que ainda acabava de acordar. Parou para tomar um copo de café na padaria, na banca folheou o jornal do dia e seguiu seu caminho. O perfume que exalava podia ser sentido à distância, despertando nos poucos que já se encontravam de pé as mais diversas sensações.

Em seguida, entrou no primeiro ônibus que avistou no ponto. Ao trocador fez menção para que avisasse quando estivessem chegando ao ponto final. Sentada, repousou a cabeça na janela e se colocou a pensar. Seriam os últimos quilômetros antes da decisão final, e se havia algum momento para se arrepender, era agora.

Permaneceu imóvel até seu destino. Agradeceu pelo aviso ao trocador e desceu do ônibus. Uma simples olhada ao redor de si indicou que ela conseguira exatamente o que queria: estava em lugar que desconhecia por completo. A praia em frente ao ponto escolheu como local perfeito para o seu ato.

Da pasta que trazia consigo, já na areia, foi retirando uma a uma as folhas do livro que terminara dias antes. Em seguida, colocou-as lentamente no mar, deixando que fossem levadas vagarosamente.

À editora que esperava ansiosamente aquela que seria a continuação de seu romance de maior sucesso, disse apenas que havia perdido os originais, e, em seguida, pediu sua demissão.

À sua moral, entretanto, dera força redobrada, através da consciência de que escrever não haveria de se tornar jamais uma obrigação contratual, um ato forçado. Permaneceria como algo feito com paixão, com uma vontade imensa de fazer das palavras seu mundo.

A chuva caía forte do lado de fora. Em seu quarto, Beatriz ouvia com enorme prazer o som das gotas batendo na janela. Sorria graciosamente.

Havia mais mundo a se viver do que aquele que o dinheiro podia comprar.